Depoimento: Bolsonaro troca grosseria por chacota e escala humorista dublê para explicar Pibinho

Episódio inova na estratégia de criar cortinas de fumaça para tentar acobertar deficiências do governo

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Brasília

Como de costume, estacionei meu carro às 8h em frente ao Palácio da Alvorada. A manhã prometia ser tranquila. Irritado com as notícias sobre seu governo, o presidente Jair Bolsonaro vinha evitando nas últimas semanas responder perguntas dos jornalistas.

Desta vez, a expectativa era que ele deixasse a residência oficial às 9h30, após café da manhã com a bancada federal do PSD. Por volta das 9h, no entanto, o cenário de calmaria mudou com o anúncio do IBGE de que o PIB do Brasil cresceu 1,1% em 2019.

O resultado representa o terceiro ano seguido de crescimento fraco da economia brasileira —período antecedido por dois anos de queda do PIB.

Além disso, fui informado que, naquele momento, a TV Record promovia uma entrevista exclusiva com o presidente, na qual ele poderia fazer projeções sobre a atividade econômica.

Por se tratar de um assunto relevante e de interesse público, avaliei que, mesmo se o presidente se recusasse novamente a responder perguntas, deveria questioná-lo sobre o tema.

Por volta das 9h40, a comitiva presidencial se deslocou para a saída da residência oficial. Como de praxe, os automóveis oficiais pararam na portaria principal. Para a surpresa de nós, jornalistas, quem desembarcou não foi o presidente, mas um comediante fantasiado de Bolsonaro.

Com uma faixa presidencial e um cacho de bananas, o humorista Márvio Lúcio dos Santos Lourenço, conhecido como Carioca, fez uma encenação sob a estrutura do governo. Ele desembarcou do veículo oficial ao lado do chefe da Secom (Secretaria Especial de Comunicação), Fabio Wajngarten, que parecia se divertir com a performance. O ministro da Secretaria de Governo, Luiz Ramos, observava à distância. 

Jair Bolsonaro e o humorista Márvio Lúcio dos Santos Lourenço, conhecido como Carioca
Jair Bolsonaro e o humorista Márvio Lúcio dos Santos Lourenço, conhecido como Carioca - Reprodução

Tomei então a decisão de me afastar, afinal estava no local para exercer a minha atividade profissional, não para participar de uma esquete de humor. O gesto foi seguido por outros colegas jornalistas.

O que era para ser um show de comédia tornou-se uma piada sem graça. Inicialmente, o humorista tentou distribuir um cacho de bananas em referência ao episódio recente em que Bolsonaro, irritado com a cobertura da imprensa, cruzou os braços com as mãos fechadas, dando uma banana aos repórteres.

A fruta distribuída por Carioca foi recusada pelos jornalistas e cinegrafistas. O humorista não desistiu e pediu para que os repórteres fizessem perguntas a ele, o que não ocorreu. "Ninguém tem pergunta?", repetia, sem obter respostas.

A cena era transmitida ao vivo pela Presidência, nas redes sociais do presidente. A equipe da TV Record, que acaba de contratar o humorista, também filmava a performance teatral.

Ao sair do Alvorada, Bolsonaro desceu de um dos carros da comitiva presidencial. Neste momento, o grupo de repórteres retornou ao cercado da imprensa. Era a oportunidade de o presidente prestar contas da fraca atividade econômica durante seu primeiro ano de governo.

Em vez de responder seriamente às perguntas, o presidente preferiu fazer chacota. Visivelmente irritado com o resultado do PIB, se posicionou ao lado de Carioca e, como um operador de ventríloquo, orientou as suas respostas aos jornalistas.

"O que que é PIB? PIB? O que que é PIB? Pergunta o que é PIB", disse o presidente ao humorista.

Nós insistimos que a pergunta era direcionada ao presidente, não ao humorista. Carioca não se constrangeu com a situação e aceitou ser usado por Bolsonaro. "O que é PIB? Paulo Guedes, Paulo Guedes", repetiu, referindo ao ministro da Economia.

A cena divertiu o presidente, que instruiu o humorista a pedir aos veículos de comunicação que fizessem outras perguntas. "Outra pergunta, outra pergunta", repetia Carioca.

Com a recusa de Bolsonaro em falar com os jornalistas, decidimos nos retirar de novo. Sem público, Bolsonaro também resolveu abandonar o local, deixando o comediante sozinho.

Nas portarias diárias no Palácio da Alvorada, o presidente se acostumou a recorrer a informações falsas quando se sente acuado por denúncias de irregularidades ou por questionamentos sobre as investigações contra o senador Flávio Bolsonaro e o ex-assessor dele Fabrício Queiroz  —a Promotoria do Rio investiga esquema de "rachadinha" na Assembleia do Rio quando o filho mais velho do presidente era deputado estadual.

O episódio desta quarta é uma inovação na estratégia de criar cortinas de fumaça para tentar acobertar deficiências de seu governo.

Em vez de distribuir grosserias e ofensas, escalou um dublê para desempenhar um papel que, na verdade, caberia só a ele: o de prestar contas à sociedade.

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