Descrição de chapéu Folha Mulher

Enfermeiras brasileiras marcaram protagonismo feminino na 2ª Guerra Mundial

Pioneiras, voluntárias da FEB (Força Expedicionária Brasileira) passaram por treinamento militar e físico

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Porto Alegre

A noite com a lua aparente no céu de Florença, na Itália, ficou marcada pelo bombardeiro dos nazistas que tentavam evitar que os inimigos avançassem. “Fui ver por que os italianos estavam tirando aqueles entulhos muito rápido e deu para ver o bracinho dum bebê, um bebê bonitinho, deveria ter um ano e pouco”, contou Bertha de Moraes Nerici.

Nerici, morta em 2005 aos 83 anos, era uma das 67 enfermeiras voluntárias brasileiras que se somaram ao Serviço de Saúde da FEB (Força Expedicionária Brasileira). Outras seis enfermeiras atuaram junto à Força Aérea.

A FEB contou com cerca de 25.000 soldados e foi criada especificamente para o Brasil lutar contra as tropas de Adolf Hitler durante a Segunda Guerra Mundial.

“Às vezes, eu sonhava e no sonho eu via um varal, mas em vez de roupas, via aqueles pedaços de pernas, de braços e de carne”, disse a enfermeira. Seu depoimento compõe o arquivo de história oral do Exército na Segunda Guerra.

A FEB foi extinta pelo governo federal após o fim da guerra, com a derrota de Hitler pelos Aliados.

“Os brasileiros conviveram com a tropa norte-americana, conviveram com esse ideal de liberdade que não era o que acontecia no país com Getúlio Vargas. A FEB foi encerrada e as enfermeiras dispensadas. Getúlio queria se livrar de todo mundo”, diz Margarida Rocha Bernardes, professora da Escola Superior de Guerra e integrante da Academia Brasileira de Medicina Militar.

As enfermeiras só seriam reincorporadas anos mais tarde, em 1957.

O Brasil declarou guerra a Hitler em 1942, depois que 35 navios brasileiros foram atacados na costa brasileira e 32 afundaram, deixando centenas de mortos, diz Israel Blajberg, presidente da Academia de História Militar Terrestre do Brasil, no Rio de Janeiro, e vice-presidente da Casa da FEB, também no Rio.

Os soldados brasileiros foram à Itália em 1944 e, em 21 de fevereiro de 1945, venceram a batalha de Monte Castello. A tomada do morro era essencial para permitir o avanço dos Aliados e barrar as tropas alemãs.

O governo convocou voluntárias de 18 a 36 anos que fossem solteiras, viúvas ou separadas e que tivessem diploma de enfermeira. Pioneiras, todas passaram por cursos de saúde, instrução militar e treinamento físico antes do embarque.

“Elas foram mulheres que romperam com o padrão da época, um padrão que era ser casada e protegida no lar. As enfermeiras escolheram trabalhar, viver fora de casa, em outro país, conviviam com homens. Foram extremamente ousadas nessa trajetória”, diz Bernardes, que tem se dedicado a investigar o tema há 20 anos.

Duas enfermeiras que atuaram na Segunda Guerra estão vivas, de acordo com os pesquisadores ouvidos pela reportagem: a capitã Virgínia Portocarrero, 102, do Rio de Janeiro, e a tenente Carlota Mello, 105, de Minas Gerais. As centenárias, segundo familiares e pesquisadores, têm enfrentando dificuldades de fala e escuta.

Portocarrero recebeu o título de doutora honoris causa pela Unirio (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro), na última quarta-feira (4). Com dificuldades em decorrência da idade avançada, não esteve na cerimônia.

“O que ela mais falava era sobre ter socorrido seu primo, que foi ferido na guerra. Ela trocava os itens que não usava por artigos para os enfermos, inclusive cigarro. Ela achava que, apesar de não ser adequado, melhoraria a autoestima deles. Ela escrevia carta para os familiares dos soldados que não podiam escrever. Ela fazia isso por eles”, conta a neta Renate Portocarrero, 46.

A capitã conseguia burlar a censura de Vargas às cartas, que mandava ao pai, relatando sua rotina. “Ela não mandava pelo correio oficial, mas de mão em mão, por meio dos soldados feridos que voltavam para o Brasil”, conta Bernardes.

Em depoimento ao arquivo de memória oral do Exército, Portocarrero contou sobre os cuidados com seu primo, Helio Portocarrero: “A radiografia confirmou fratura dos artelhos. Foram retirados 68 estilhaços, uns superficiais e outros mais profundos. Alguns ainda lá ficaram para não macerar os tecidos. Chegou à enfermaria ainda anestesiado e tomando soro, penicilina de três em três horas, sulfa e bastante líquido”.

Lidar com situações extremas fazia parte do cotidiano das brasileiras. “O homem chegava lá consciente que tinha perdido uma perna, que tinha perdido um olho, que tinha perdido um braço, que tinha sido mutilado. Aí, era mais um serviço psicológico. Porque então ele não queria saber de nada, ele queria morrer. Eu falava de namorada no Brasil, família, pai, mãe. Mas nada interessava àquele homem”, disse a tenente Carlota Mello em depoimento que integra o documentário “Aquelas Mulheres de Farda” (2018), de Daniel Mata Roque.

“[Mello] optou por viver em um lar de idosos. Parte de seu dia, passa lendo e escrevendo, como ela mesma diz, ‘pensamentos soltos e caduquices’”, escreveu a pesquisadora Risalva Neves, da UNB (Universidade de Brasília) no trabalho “O Discurso de Calota Mello em Único Ato” (2018).

Os cuidados iam além de ferimentos físicos, diz Blajberg. “O estresse pós-traumático ainda não era muito conhecido, ainda era interpretado como covardia dos soldados. Mas uma seção tinha esse cuidado, então foram pioneiras também nesse aspecto”, diz.

As brasileiras chamaram a atenção pela agilidade no atendimento. “Elas faziam pulsão venosa para infundir medicação com acesso às veias. As norte-americanas não faziam esse serviço, que ficava para os médicos. As brasileiras receberam elogios porque não era preciso esperar o médico e elas adiantavam o trabalho”, explica Bernardes, que também é enfermeira de formação.

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