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Para magistrada, machismo involuntário de juízes pode afetar decisões sobre mulheres

Coordenadora da Ajufe Mulheres afirma que participação feminina na Justiça é fundamental para a democracia

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São Paulo

Coordenadora da comissão que trata de igualdade de gênero da Ajufe (Associação dos Juízes Federais do Brasil), a magistrada Tani Maria Wurster, 44, afirma que a participação das mulheres no Judiciário é um fator fundamental para a democracia.

Nos últimos dez anos, diz a juíza, o número de mulheres promovidas para cargos na segunda instância cresceu apenas 1% na Justiça estadual. Na Federal, caiu 3%.

A juíza federal Tani Wurster, coordenadora da Ajufe Mulheres, comissão da Associação dos Juízes Federais do Brasil - Andre Coelho/Folhapress

Para Tani, o machismo da sociedade impacta a forma como a Justiça trata as mulheres em suas decisões, seja culpando vítimas para inocentar criminosos sexuais, seja na dificuldade em reconhecer o papel do trabalho feminino em todas as suas vertentes, incluindo o doméstico.

"As expectativas em relação ao comportamento da mulher na sociedade podem interferir nas decisões judiciais", diz Tani, em entrevista à Folha. "É muito importante que os juízes estejam atentos para não reproduzirem padrões involuntários e inconscientes discriminatórios."

O que os dados sobre a participação feminina no Judiciário indicam? A participação das mulheres no Judiciário é fundamental para a democracia, mas a gente tem um déficit de representatividade feminina. Cinquenta e dois por cento da população brasileira é formada por mulheres, mas só 39% dos magistrados no país são mulheres —desses 39%, quase metade, 45%, são juízas que se encontram no nível mais baixo da carreira.

Outra coisa é que tem havido uma estagnação da participação feminina no acesso aos cargos de segundo grau. Nos últimos dez anos, o aumento de magistradas nos cargos de desembargadora foi apenas de 1%. Na Justiça Federal, essa dificuldade de acesso ao segundo grau é ainda mais acentuada: houve uma redução do percentual de mulheres em mais de 3%.

E por que que as mulheres não são promovidas? É difícil atribuir uma causa única para um problema tão complexo quanto a desigualdade de gênero. O problema é um reflexo de um padrão de discriminação, várias vezes involuntário e inconsciente, que já existe na sociedade.

Mas é seguro dizer que uma delas é a divisão sexual do trabalho, que impacta todas as carreiras. Há pesquisas que indicam que as mulheres gastam até cinco vezes mais [tempo] do que os homens no trabalho doméstico, que é não remunerado. É um tempo que elas não estão despendendo no estudo, no lazer ou no mercado de trabalho.

Isso pode gerar impacto tanto nas escolhas individuais das juízas no momento, por exemplo, de prestar um concurso público para a magistratura ou para se candidatar a uma promoção. Isso porque na maioria dos casos do Poder Judiciário a promoção implica uma mudança do local de residência. Se você é a principal responsável pelo cuidado dos filhos ou de um parente doente, isso tem um impacto familiar maior.

Os dados do CNJ indicam que, em nível de estudo e capacitação, homens e mulheres juízes são equivalentes. Que hipóteses ajudam a explicar os motivos para as mulheres serem menos promovidas por merecimento no Judiciário? Acredito que um fenômeno que pode explicar isso é o que se tem socialmente em relação ao lugar da mulher na sociedade. Quando a mulher adentra o espaço público, que é o espaço do trabalho, essa presença causa um desconforto.

Não se trata de discriminações voluntárias e conscientes. Parte disso se explica pela premissa de que o lugar que é ocupado histórica, social e culturalmente pela mulher é o espaço doméstico. Agora isso é sutil, é inconsciente, e pode influenciar decisões que são tomadas a partir de critérios subjetivos.

A sra. acha que fez diferença ter a ministra Cármen Lúcia, uma mulher, na presidência de CNJ e STFEu não tenho dúvida de que a existência de mulheres no Judiciário e em cargo de maior hierarquia tenha uma influência positiva no resultado geral do exercício da jurisdição. O que eu preciso deixar claro é que não há uma diferença essencial nas decisões proferidas por homens ou mulheres. O que difere são as experiências que as mulheres vivem enquanto grupo, que não são as mesmas dos homens.

Permitir que decisões judiciais sejam proferidas por pessoas iguais e que compartilham as mesmas experiências —por exemplo, majoritariamente por homens brancos— impede a influência das experiências dos demais grupos sociais —mulheres, homens negros,  mulheres negras, homossexuais— sobre o resultado final do exercício da jurisdição.

É imperativo da democracia que os vários grupos que compõem a sociedade sintam-se também representados naqueles que proferem as ordens judiciais.

As expectativas em relação ao comportamento da mulher na sociedade podem interferir nas decisões judiciais, que podem ser proferidas tanto por homens como mulheres.

Ou seja, o machismo presente na sociedade, em homens e mulheres, está presente em decisões judiciais. Exatamente.

Como a sra. vê essa questão? É muito importante que os juízes estejam atentos para não reproduzirem padrões involuntários e inconscientes discriminatórios. Vou dar um exemplo: decisões judiciais sobre violência sexual nas quais o comportamento da vítima é levado em conta para absolver o agressor, ou o fato de ela estar eventualmente bêbada. Uma decisão nesse sentido pode representar esse viés discriminatório, da expectativa de que a mulher deva se comportar de um determinado modo, relacionado ao recato e à decência, que justifique a absolvição do acusado.

Mais algum exemplo? Na concessão da aposentadoria rural, é preciso ficar reconhecido o trabalho em regime de economia familiar, que pressupõe que o trabalho do grupo familiar seja indispensável à subsistência. Se você parte do pressuposto da valorização do trabalho rural do homem, da desvalorização do trabalho doméstico da mulher e da desvalorização do trabalho dela no campo, você pode eventualmente reconhecer que as horas que a mulher do campo trabalha cuidando dos filhos não é trabalho rural.

Então, você nega o pedido de aposentadoria para ela —embora, se você computar as horas totais do dia, ela trabalhou mais horas do que o marido, porque somou o tempo de trabalho doméstico com o do trabalho do campo.

O presidente da República tem incentivado ataques a mulheres, inclusive a jornalistas, como aconteceu com uma repórter da Folha. Esse tipo de ataque dificulta o trabalho das mulheres também no Judiciário? A democracia se enfraquece quando são proferidos ataques depreciativos sobre a pessoa da profissional. Esses comentários são utilizados como estratégia para desqualificar o exercício da profissão e afetam o sentido da democracia. Construir uma sociedade livre, justa e solidária é um dos objetivos da República inscritos na Constituição, assim como promover o bem-estar de todos sem preconceito de origem, raça, sexo, cor e idade e qualquer outra forma de discriminação.

É essencial que todos estejam atentos e vigilantes a práticas autoritárias. Para além de uma ofensa vulgar, que fundamenta uma estrutura que autoriza a discriminação das mulheres nas relações cotidianas e sustenta a naturalização de violência física, sexual e psicológica, essas práticas autoritárias fragilizam o tecido social e ameaçam a democracia.

Todas as manifestações que procuram desqualificar a atuação profissional das mulheres a partir da ofensa em razão de serem mulheres não só estruturam e naturalizam violências sofridas cotidianamente como também fragilizam o tecido social e ameaçam os pilares da democracia.

A juíza federal Tani Wurster, coordenadora da Ajufe (Associação dos Juízes Federais do Brasil) Mulher
A juíza federal Tani Wurster, coordenadora da Ajufe (Associação dos Juízes Federais do Brasil) Mulher - André Coelho/Folhapress

Tani Maria Wurster, 44
É juíza federal em Ponta Grossa (PR) e coordenadora da Ajufe Mulheres, comissão da Associação dos Juízes Federais do Brasil que trata de questões de gênero. Mestre em direito pela Universidade Federal do Paraná.

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