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Cláudia Viscardi

'Revolta dos governadores' é evento inusitado por amplitude e força

Embate com Bolsonaro ocorre em situação de fragilidade dos estados, pressionados pela pandemia do coronavírus

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Cláudia Viscardi

O Brasil conheceu a sua experiência institucional federalista em 1891, quando aprovou a primeira Constituição republicana, embora as ideias acerca dos benefícios ou malefícios do sistema já fossem objeto de debates entre intelectuais e políticos do regime pregresso.

Inspirados pelo bem-sucedido modelo estadunidense e por outras experiências nem tão igualmente exitosas na América Latina, os republicanos de primeira hora construíram um modelo de relação entre estados e União, não isento de conflitos e disputas, mas que permaneceu incólume pelo menos até a Revolução de 1930.

Mas por que estamos hoje voltando ao período oligárquico para discutir os atuais conflitos entre governadores e a Presidência da República, em pleno século 21?

Porque pela primeira vez, depois de quase 130 anos de experiência federalista, assistimos a uma crise sem precedentes protagonizada pelos entes do sistema, em que pese experiências pregressas a alternarem períodos entre mais ou menos autonomia dos estados em relação à União.

O governador de São Paulo, João Doria, e o presidente Jair Bolsonaro em fotomontagem
O governador de São Paulo, João Doria, e o presidente Jair Bolsonaro em fotomontagem - Governo do Estado de SP/Presidência da República/Divulgação

A presente “revolta dos governadores”, capaz de fazer levantar do túmulo Campos Sales, que tanto esforço fez para estabelecer uma relação amistosa entre as partes, põe em xeque o sistema de freios e contrapesos tão bem idealizado pelos “pais fundadores” da atual América de Donald Trump.

O modelo, quando criado a partir das reflexões de Rui Barbosa, foi arduamente defendido por ele na Assembleia com o fim de derrotar um projeto alternativo dos positivistas gaúchos que previa uma autonomia aos estados ainda maior da que foi conferida pelo texto final aprovado.

Mesmo assim, as unidades federadas dispunham de mais autonomia, sobretudo financeira, do que hoje dispõem os governadores em litígio.

As receitas fiscais dos estados exportadores lhes garantiam não só a possibilidade de se manterem à revelia dos cofres da União, como de fazer investimentos em infraestrutura, conferir crédito para o setor produtivo, bem como manter todos os serviços públicos.

Já estados menores e, por conseguinte, mais empobrecidos, dependiam ou de repasses da União ou do endividamento externo, o que até a reforma de 1926 lhes era permitido por lei.

Sem contestar a existência de expressiva margem de manobra por parte dos presidentes da Primeira República (1889-1930), eram as máquinas oligárquicas estaduais, sustentadas pelas suas bancadas no Parlamento, quem detinham a hegemonia política. Autonomia sem recursos é letra morta. Eles possuíam ambos.

A partir da década de 1930, o poder das oligarquias regionais seria esvaziado por meio do fortalecimento progressivo da instituição presidencial, cujo ápice se deu nas duas ditaduras, a do Estado Novo (1937-1945) e a civil-militar (1964-1985).

Como se percebe, ao longo de toda a história republicana, apenas na Primeira República os governadores gozaram de expressiva autonomia política e financeira e podiam barganhar com a Presidência e no Congresso os seus interesses regionais.

Isso não impediu que presidentes tentassem interferir sobre a autonomia de tais unidades federadas, uma vez que a redação do artigo 6º do texto constitucional, pela sua fluidez, permitia que oligarquias mais frágeis sofressem o peso do punho presidencial, confome ocorreu em governos mais autoritários, como os de Floriano Peixoto (1891-1894), Hermes da Fonseca (1910-1914) e Arthur Bernardes (1922-1926).

O poder conferido à Presidência da República pela Constituição que hoje nos rege, a de 1988, é maior do que o de 1891. O pacto federativo aprovado na redemocratização delegou aos estados uma série de encargos, mas não os recursos para assumi-los.

O que assistimos, desde então, foi um endividamento progressivo dos estados, tornando os governadores reféns das articulações políticas com a Presidência, uma vez que não dispõem mais de bancadas fiéis, que se dissiparam em outros interesses corporativos, para além dos regionais.

Assim sendo, a “revolta dos governadores” a que hoje assistimos é um evento inusitado em nossa história republicana pela sua amplitude e força, sobretudo por ocorrer em uma situação de fragilidade dos estados, que pressionados a dar respostas à crise pandêmica, não dispõem nem de recursos nem de apoio do governo federal.

Destaca-se que a crise financeira, por si só, faz-se insuficiente para pôr em risco o equilíbrio entre os entes federativos. A ela somou-se uma Presidência que se mostra cada dia mais fragilizada e incapaz de promover a necessária articulação política, ingrediente fundamental ao bom funcionamento da engrenagem.

Formam-se hoje dois grupos de interesse, com projetos e expectativas diferentes em relação ao enfrentamento do que seja provavelmente a nossa maior crise sanitária e econômica já vivida.

Mas tal como na “velha república”, as vítimas serão as mesmas, o povo simples e trabalhador, que assistirá atônito à crise nas margens onde sempre esteve.

Cláudia Viscardi

Professora titular da Universidade Federal de Juiz de Fora, é doutora em história e autora de "O Teatro das Oligarquias: Uma Revisão da Política do Café com Leite" e "Unidos Perderemos: A Construção do Federalismo Republicano Brasileiro"

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