Dilma nunca me pressionou como Bolsonaro pressionou Moro, diz ex-ministro da petista

Esquerda exalta autonomia da PF reconhecida por Moro em gestões petistas e mantém críticas ao ex-juiz da Lava Jato

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São Paulo

Ex-ministro da Justiça na gestão da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), José Eduardo Cardozo afirmou que o presidente Jair Bolsonaro, ao tentar interferir na autonomia da Polícia Federal, "faz o que nunca fizemos e nem pensamos em fazer".

"Dilma nunca me pressionou como Bolsonaro pressionou Moro. Ela só queria saber se as ações eram legais ou não, interferir no mérito jamais", disse Cardozo à Folha.

A acusação de que Bolsonaro tentou intervir politicamente nas investigações da Polícia Federal foi feita pelo seu ministro da Justiça, o ex-juiz da Lava Jato Sergio Moro, ao anunciar seu pedido de demissão nesta sexta-feira (24).

Mais tarde, em pronunciamento, Bolsonaro negou interferência na PF e afirmou que Moro condicionou a troca na chefia do órgão a uma vaga no Supremo, o que o ex-juiz também negou.

Pela manhã, ao anunciar sua saída, Moro ainda enalteceu seu papel na busca pela autonomia da Polícia Federal e destacou essa característica da corporação nos governos dos ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, ambos do PT. Segundo Moro, os petistas mantiveram a autonomia da PF, mesmo com "inúmeros defeitos" e envolvimentos em casos de corrupção.

Por sua atuação na Lava Jato, Moro se consolidou como um dos principais adversários do PT, alvo da operação. Moro foi o responsável pelas condenações de Lula por corrupção, sentenças que foram confirmadas em cortes superiores e acabaram levando o ex-presidente à prisão. Mensagens divulgadas pelo The Intercept Brasil no ano passado levaram a questionamentos sobre a imparcialidade do ex-juiz.

Pelo Twitter, Dilma fez críticas a Moro na tarde desta sexta-feira. "Se o sr. Moro tivesse 10% da sinceridade que tentou transmitir na entrevista-delação contra Bolsonaro, seu ex-chefe, teria aproveitado e pedido desculpas ao povo brasileiro por todas as mentiras que contou sobre Lula", escreveu.

Também ex-ministro da Justiça de Dilma, Eugênio Aragão afirmou que Moro falou algo que o governo da ex-presidente sempre repetiu: havia autonomia na PF. "Acho curioso que o Moro fale isso agora, o que a gente sempre disse", declarou Aragão à Folha.

Políticos de esquerda, como o ex-prefeito Fernando Haddad (PT), que perdeu para Bolsonaro a eleição presidencial de 2018, também comentaram o fato de Moro ter exaltado as gestões passadas do governo federal.

"Trágica ironia: Moro é obrigado a reconhecer a autonomia dada pelos governos petistas à PF. Moro usou a PF para armar contra o Lula e pavimentar a vitória de Bolsonaro. Bolsonaro engoliu Moro e a PF", afirmou.

"Nesse aspecto, Moro foi absolutamente verdadeiro. Nunca interferimos na PF para dizer quem deveria ser investigado e quem não deveria", afirmou Cardozo.

"Bolsonaro agiu diferente, e tenta mudar algo que nasceu com o governo Lula e se consolidou no governo Dilma", completa. Para Cardozo, Bolsonaro será mal sucedido se tentar paralisar investigações, já que a PF "respeita hierarquia, mas preza muito sua institucionalidade".

Cardozo disse ainda que as revelações de Moro sobre Bolsonaro, de que o presidente queria mexer na PF para ter acesso a relatórios de inteligência, configuram crime de responsabilidade.

"O crime de responsabilidade está evidenciado. Mas o impeachment é um processo jurídico-político. Tem que haver uma apreciação do Congresso sobre a conveniência da saída de Bolsonaro."

Na opinião de Aragão, "Moro foi conivente com os crimes que atribui a Bolsonaro, porque manteve-se a seu lado com sonho de ir ao STF ou de herdar o espólio político de Bolsonaro".

O ex-ministro teceu uma série de críticas a Moro e defendeu a saída de Bolsonaro da Presidência.

"Moro calou, sabendo que esse governo é criminoso. Não acho que devamos permitir que Moro continue ditando a agenda política deste país, como fez por cinco anos. Bolsonaro deve sair, porque não está à altura dos urgentes desafios da crise sanitária, porque agrediu a democracia e porque não tem plano econômico para tirar o país do colapso. Não porque Moro disse que ele é criminoso, porque Moro não tem moral para isso", afirmou.

Dilma e Lula costumam repetir que seus governos criaram e fortaleceram os mecanismos de combate à corrupção no país. Ainda em 2014, diante das primeiras operações da Lava Jato, Dilma afirmou que "não aumentou a corrupção, aumentou a investigação".

"Não passamos para debaixo do tapete e não engavetamos processos. Agora investigamos, porque demos autonomia à PF para fazer e escolhemos na lista do MP aqueles que eles apresentaram, e não um engavetador de ocasião", disse.

Em seu discurso no Senado durante o julgamento do impeachment, em agosto de 2016, também falou sobre o tema. "É notório que durante o meu governo e o do presidente Lula foram dadas todas as condições para que estas investigações fossem realizadas. Propusemos importantes leis que dotaram os órgãos competentes de condições para investigar e punir os culpados", disse.

"Assegurei a autonomia do Ministério Público, nomeando como Procurador-Geral da República o primeiro nome da lista indicado pelos próprios membros da instituição. Não permiti qualquer interferência política na atuação da Polícia Federal. Contrariei, com essa minha postura, muitos interesses", completou.

Em uma das primeiras falas após sair da prisão por decisão do STF (Supremo Tribunal Federal), em novembro de 2019, Lula afirmou que ninguém investiu mais na PF do que ele. “Sou defensor de uma Polícia Federal forte, e trabalhei para isso."

Ex-ministro da Justiça do governo Michel Temer (MDB), Torquato Jardim entendeu a fala de Moro sobre autonomia da PF em gestões anteriores como um elogio também ao emedebista.

"Uma coisa é o presidente e o ministro da Justiça procurarem informação sobre o andamento dos processos. Interferência vai além, é se tentam condicionar a atuação da PF. Isso nunca se passou no governo Temer. Ele nunca cobrou do ministro da Justiça atuação dessa natureza", disse à Folha.

Para Jardim, a autonomia da PF é garantida na Constituição e o corpo técnico do órgão é bem treinado e ciente de sua independência. "Se algum ministro ou presidente acha que vai interferir na condução do processo, isso não existe na atual Constituição, na atual democracia."

Reação na esquerda

Ao longo do dia, políticos de esquerda enumeraram os possíveis crimes cometidos por Bolsonaro a partir da fala de Moro. PT, PDT, PSB e PSOL defendem o "fora, Bolsonaro" e avaliam estratégias, entre elas o impeachment, para tirar Bolsonaro do cargo. Também estudam como gerar mobilização popular e condições políticas favoráveis a isso.

Embora a fala de Moro tenha aprofundado gravemente a crise do governo Bolsonaro, contribuindo para os objetivos da esquerda, a reação dos políticos desse campo político foi de não poupá-lo. Houve críticas ao Bolsonaro e ao ex-juiz.

"Nesta confrontação chocante entre Moro e Bolsonaro, o país ganha muito com a briga em si. Só hoje já tivemos notícia de uma lista de artigos do código penal além de crime de responsabilidade: prevaricação, falsidade ideológica, tráfico de influência, obstrução da justiça, abuso de autoridade, e contando...", afirmou o ex-ministro Ciro Gomes (PDT), que concorreu ao Planalto em 2018.

Guilherme Boulos (PSOL) defendeu a investigação de Bolsonaro pelos crimes de desvio de função e tentativa de obstrução de Justiça. Também mirou Moro: "Moro interferiu nas eleições a favor de Bolsonaro, virou ministro sabendo de Queiroz e da relação com milicianos e nunca disse um pio sobre a milícia digital de Carluxo. Não venha agora querer apresentar-se como traído. Seu projeto é tão asqueroso quanto o de Bolsonaro".

"Essa delação premiada feita pelo Moro não atenua o fato de ele ter usado o Ministério da Justiça e a Polícia Federal para encobrir diversos crimes da família Bolsonaro", afirmou o deputado Marcelo Freixo (PSOL-RJ).

Freixo afirmou que Moro usou politicamente a Polícia Federal ao acobertar crimes da família Bolsonaro. "Vamos combinar uma coisa, Moro sempre soube quem é Jair Bolsonaro. Ambos estão pouco se lixando para a corrupção. Cada um está fazendo o seu jogo em nome de seu projeto de poder pessoal."

Mesmo que Moro agora seja ferramenta para superar o bolsonarismo, os petistas também fizeram questão de demarcar suas diferenças.

"Sergio Moro entregou Bolsonaro ao processo de impeachment, enquanto tentou se apresentar como alternativa à ele. Mas seu baixo jogo político não funcionará. Ele elegeu o atual presidente da República e é co-réu de todos os crimes cometidos em associação com Bolsonaro", afirmou o senador Humberto Costa (PT-CE).

Haddad sugeriu ainda que os ministros de Bolsonaro renunciem, forçando a renúncia do presidente, diante dos "vários crimes de responsabilidade descritos por Moro". "O impeachment é processo longo. A crise sanitária e econômica vai se agravar se nada for feito."

Para a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, a fala de Moro foi uma "confissão de crimes e uma delação contra Bolsonaro".

"Moro sai ainda menor do que entrou. O falso herói contra a corrupção protegeu os corruptos da família Bolsonaro e jamais defendeu democracia ameaçada pelo chefe. Sai humilhado depois de fazer o serviço sujo. Uma pergunta o perseguirá: Cadê o Queiroz, Sergio Moro?", escreveu no Twitter.

Os líderes do PT na Câmara, Enio Verri (RS), e no Senado, Rogério Carvalho (SE), também criticaram Bolsonaro e Moro ao mesmo tempo.

"Moro não tem credibilidade e nem Bolsonaro. Nós sempre afirmamos que o golpe de 2016 e a prisão de Lula eram para aparelhar instituições, e o Moro tem sua assinatura nisso", disse Carvalho.

"Bolsonaro acaba de acusar Sergio Moro de exigir a nomeação ao STF em troca da substituição do diretor-geral da Polícia Federal. E disse que isso é desmoralizante. É a isto que está entregue um país que é consumido por uma pandemia", afirmou Verri, para quem o impeachment do presidente está mais próximo.

As acusações de Moro levaram o PSOL a protocolar ofício junto à PGR (Procuradoria-Geral da República) pedindo a adoção de ações contra as interferências de Bolsonaro em investigações em curso e para garantir a preservação de indícios e provas.

"Assim, com a urgência que se faz necessária, diante dos graves indícios de ocultamento e destruição de provas que o Presidente pretende realizar, solicitamos que o Ministério Público Federal determine, imediatamente, a busca e apreensão de todas as provas e indícios nas investigações em curso que envolvam o Presidente e seus aliados, com o objetivo de interromper o processo de destruição de provas, conforme determina o art. 282 do Código de Processo Penal", indica o partido no ofício.

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