Descrição de chapéu Governo Bolsonaro

Entenda os limites da caneta de Bolsonaro e possíveis ameaças à democracia

Eventuais medidas de exceção na crise dependem de aval do Congresso, e especialistas não veem pandemia como justificativa

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São Paulo

Um gesto do presidente Jair Bolsonaro em 19 de abril virou tema de uma discussão que se renova de tempos em tempos desde o início de seu mandato no Palácio do Planalto: até que ponto ele representa uma ameaça às instituições democráticas do país?

Naquele dia, em cima da caçamba de uma caminhonete e diante do quartel-general do Exército em Brasília, Bolsonaro participou de um ato de seus apoiadores que pediam intervenção militar no Brasil.

Em discurso, o presidente afirmou a eles que “acabou a época da patifaria” e gritou palavras de ordem como “agora é o povo no poder” e “não queremos negociar nada”.

O gesto do presidente foi seguido de fortes críticas de líderes do Congresso, dirigentes de partidos políticos, ministros do Supremo Tribunal Federal e diferentes entidades da sociedade civil. O mais duro recado veio do STF, ao autorizar a abertura de inquérito a pedido da PGR (Procuradoria Geral da República) para investigar quem estava por trás da organização do ato.

O tema voltou à tona nesta terça-feira (16). Bolsonaro afirmou que não pode "assistir calado enquanto direitos são violados e ideias são perseguidas". Ele afirmou ter presenciado abusos nas últimas semanas.

Segundo o presidente, o histórico do governo prova que sempre esteve "ao lado da democracia e da Constituição brasileira". De acordo com ele, até o momento nenhuma medida demostra qualquer apreço a autoritarismo.

A declaração de Bolsonaro ocorreu no mesmo dia em que a Polícia Federal realizou operação contra aliados do presidente justamente no inquérito aberto após o ato de 19 de abril. Foram expedidos 21 mandados de busca e apreensão.

Após o avanço das investigações, Bolsonaro afirmou que tomará medidas legais. "Luto para fazer a minha parte, mas não posso assistir calado enquanto direitos são violados e ideias são perseguidas. Por isso, tomarei todas as medidas legais possíveis para proteger a Constituição e a liberdade dos brasileiros."

Apesar de não aparecer no pedido de abertura do inquérito, o presidente ocupa o centro dessa discussão, já que frases antidemocráticas têm sido uma pauta quase constante em seu governo. O próprio Bolsonaro já afirmou que “não houve ditadura no Brasil” e que, como qualquer casamento, o regime teve alguns “probleminhas”.

Dá peso a essa preocupação o fato de Bolsonaro, desde o início da crise do coronavírus, ter feito uma série de insinuações em tom de ameaça sobre as regras do jogo. O presidente, por exemplo, ameaçou dar uma “canetada” para derrubar medidas de isolamento adotadas por governadores e prefeitos, o que acabou rechaçado pelo Supremo.

A eventual decretação de um estado de sítio também não é mais um tema tabu para o presidente. Em abril, ele disse: “Quem tem poder de decretar estado de defesa ou de sítio —depois de uma decisão do Parlamento— é o presidente da República, e não prefeito ou governador. O excesso não levará à solução do problema. Muito pelo contrário, [ele] se agravará”.

A crise política se intensificou com a saída traumática do ex-ministro da Justiça Sergio Moro. Ao anunciar sua demissão, no final de abril, o ex-juiz disse que o presidente queria um diretor-geral da Polícia Federal que o informasse sobre investigações e relatórios de inteligência. Bolsonaro admitiu interesse pessoal na PF, mas negou ter pedido a Moro o andamento de qualquer processo.

Perguntas e respostas sobre riscos à democracia brasileira

Com o agravamento da crise do coronavírus, o presidente poderia decretar estado de sítio1? Em alguma hipótese isso poderia ocorrer sem consulta aos demais Poderes?

1 Medida decretada somente pelo presidente da República, mediante aprovação prévia por maioria absoluta do Congresso. Vale por 30 dias, prorrogáveis indefinidamente. Permite suspender liberdade de reunião, pode obrigar cidadãos a permanecer em local determinado e restringir sigilo das comunicações e inviolabilidade de correspondência, entre outras garantias constitucionais. Durante sua vigência, o Congresso permanece aberto, e uma comissão com cinco parlamentares fiscaliza a execução do estado de sítio

Não há situação em que o estado de sítio possa ser instituído pelo presidente sem que haja permissão prévia do Congresso. Além disso, devem ser ouvidos o Conselho da República2 e o Conselho da Defesa Nacional3.

Segundo a Constituição, o estado de sítio pode ser decretado em caso de guerra ou na hipótese de o emprego do estado de defesa não for suficiente para garantir, entre outras situações, “a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza”.

De acordo com especialistas ouvidos pela Folha, para se instituir o estado de sítio seria preciso um agravamento muito maior da pandemia da Covid-19 do que o previsto.

“Mesmo nos países mais atingidos, não houve a decretação deste tipo de medida”, diz a advogada e doutora em direito do Estado pela USP Mariana Chiesa.

2 Órgão de consulta do presidente. São seus membros o vice-presidente, os presidentes da Câmara e do Senado, os líderes da maioria e da minoria na Câmara e no Senado, o ministro da Justiça, além de seis cidadãos

3 Órgão deve ser consultado pelo presidente em assuntos relacionados à soberania nacional e à defesa do Estado democrático. Seus membros são o vice-presidente; os presidentes da Câmara e do Senado; os ministros da Justiça, da Defesa, das Relações Exteriores e do Planejamento; e os comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica

Além do estado de sítio, o presidente poderia adotar o estado de defesa4 para reagir à crise? Ele poderia decretá-lo sem autorização de outros Poderes, de forma unilateral?

4 Medida decretada somente pelo presidente da República e que deve ser submetida para aprovação do Congresso. Aplica-se a situações de quebra da ordem ou da paz social em locais determinados, ou seja, não tem aplicação nacional. Vale por até 30 dias e pode ser prorrogado apenas uma vez, pelo mesmo período. Podem ser adotadas medidas como restrição do direito de reunião e do sigilo telefônico, assim como ocupação e uso temporário de bens e serviços públicos. O Congresso deve continuar funcionando enquanto estado de defesa estiver em vigor

Os requisitos para a decretação do estado de defesa são a desordem pública e quebra da paz social, que eventualmente decorram de uma calamidade ou instabilidade institucional grave, que não possam ser restabelecidas pelos mecanismos ordinários de segurança pública, afirma o professor da FGV-SP Oscar Vilhena.

Para Vilhena, o momento atual não configura nenhuma dessas situações. Para tanto, ele diz que seria preciso haver situações como violência nas ruas, saques, invasões de quartéis e, além disso, que os mecanismos dos próprios estados não dessem conta de enfrentar tais problemas.

Em 2018, o presidente Michel Temer alegou descontrole da criminalidade e decretou intervenção federal5 na segurança pública do Rio de Janeiro. Bolsonaro poderia usar o colapso do sistema de saúde para intervir em algum estado?

5 A Constituição determina que o governo federal não intervirá nos estados, a não ser em casos excepcionais definidos por ela. Entre os casos estão o de dar fim a “grave comprometimento da ordem pública”. O presidente pode nomear um interventor para substituir o governador ou, por exemplo, um dos secretários do governo. Tanto a amplitude quanto o prazo da intervenção devem constar no decreto, que deverá ser apreciado pelo Congresso. Caso os motivos da intervenção se encerrem, as autoridades afastadas devem retornar. O Legislativo nacional e o estadual continuam funcionando normalmente

O colapso do sistema de saúde não consta expressamente entre as hipóteses para decretação de uma intervenção federal. No entendimento de parte dos especialistas ouvidos pela Folha, no caso de colapso poderia ser usada a justificativa de enfrentar “grave comprometimento da ordem pública” para intervir.

Já Oscar Vilhena não vê legalidade na aplicação da medida nesse contexto. Ele afirma que o artigo 34 da Constituição determina que “a União não intervirá, exceto para”. “Ou seja, a ordem é a não intervenção.”

A medida caberia, segundo ele, se um governador estivesse deliberadamente causando mortes, não por incapacidade do sistema de saúde, mas por deliberada afronta às indicações da OMS. Nesse caso, poderia se falar em violação dos “direitos da pessoa humana”, uma das hipóteses para intervenção.

Caso o presidente venha a decretar intervenção em um dos estados, a decisão deve ser submetida à aprovação do Congresso em até 24 horas.

Há alguma outra medida excepcional que pode ser tomada pelo presidente independentemente do aval dos outros Poderes, com uma só “canetada”, contra decisões de governadores e prefeitos?

Não, segundo os especialistas ouvidos pela Folha. De acordo com Marcelo Proença, coordenador do Instituto Brasiliense de Direito Público, “nem mesmo as situações de exceção previstas na Constituição Federal autorizam uma ‘canetada’ do presidente da República. Em todos esses casos há a necessária intervenção, prévia ou posterior, do Congresso Nacional e a vigilância do Supremo Tribunal Federal”.

Se governadores e prefeitos adotarem medidas alegadamente prejudiciais ao país, na visão do Planalto, em uma crise como a pandemia da Covid-19, o que o presidente pode fazer para, em tese, defender os interesses nacionais?

Como a Constituição confere autonomia a estados e municípios, caso o presidente entenda que os governadores e prefeitos estejam agindo de maneira ilegal ou inconstitucional, ele poderia recorrer ao Judiciário por meio da AGU (Advocacia-Geral da União), questionando seus atos.

De acordo com Proença, as situações de exceção previstas na Constituição são extremamente restritivas e foram desenhadas para situações bastante específicas. “Divergências a propósito das medidas necessárias ao enfrentamento da pandemia não podem servir de pretexto à sua adoção.”

As instituições democráticas correriam risco diante de qual atitude extrema do presidente? Há alguma conduta extremada que ele possa adotar sem que Judiciário e Legislativo possam interferir?

Segundo o ex-juiz do TRF-3 (Tribunal Regional Federal da 3ª Região) e diretor do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp) Edgar Silveira Bueno Filho, “a Constituição Federal não cogita de atos que não se submetam a um controle seja do Poder Legislativo ou do Poder Judiciário”.

“As instituições democráticas sempre estão em risco frente a atitudes extremadas, pois a democracia é o regime que repulsa ‘atitudes extremadas’”, afirmou Floriano de Azevedo Marques, diretor da Faculdade de Direito da USP, especialista em direito do Estado. Segundo ele, qualquer ação fora da ordem jurídica corresponde a um regime de exceção, “ou, em outra palavra, [a uma] ditadura”.

Quais são as ameaças à democracia caso um presidente tenha maioria no Congresso e amparo legal de ministros do STF?

A Constituição determina a separação de Poderes e um sistema de freios e contrapesos de modo que cada Poder possa atuar de forma autônoma, sendo porém controlado pelos demais.

O fato de um presidente ter maioria no Congresso ou apoio no STF, por si só, não seria problema. Segundo os especialistas entrevistados, a democracia fica sob ameaça caso medidas autoritárias do Executivo não sejam freadas pelos demais.

O professor Oscar Vilhena aponta exemplos de países como Hungria6 e Polônia7 para explicar o que seria o legalismo autoritário, em que o Estado de Direito é fragilizado por meio de mudanças legais e institucionais.

Ainda que o Legislativo e o Judiciário brasileiros estejam apresentando resistência a atos com viés autoritário, para Vilhena isso “não significa que não tenhamos uma degradação das garantias do Estado democrático de Direito”.

6 A crise do coronavírus foi utilizada pelo governo da Hungria para intensificar medidas autoritárias no país. Com maioria no Parlamento, o premiê Viktor Orbán aprovou lei que dá a ele o direito de governar por decreto durante tempo indeterminado. Entre os poderes especiais adquiridos está o de suspender sessões parlamentares e eleições

7 O governo nacionalista e conservador polonês tem conseguido aprovar leis que reformam o Judiciário. As medidas são consideradas ataques à separação entre os Poderes. Entre elas está a lei que reduz a idade de aposentadoria compulsória dos juízes da Suprema Corte e a que permite ao ministro da Justiça contratar e demitir juízes que comandam os tribunais comuns. Em dez.19, o Parlamento aprovou ainda uma lei que permite punir juízes que se opõem a tais reformas

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