Bolsonaro gera reação ao tentar blindar agentes públicos por atos na pandemia do coronavírus

Partidos e entidades vão à Justiça contra MP que só pune 'erro ou dolo grosseiro' e acusam presidente de querer se eximir de responsabilidades

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Brasília

O presidente Jair Bolsonaro provocou forte reação negativa ao editar nesta quinta-feira (14) uma medida provisória que protege agentes públicos de responsabilização por atos tomados durante a crise do novo coronavírus.

Desde o início da pandemia, Bolsonaro minimiza o impacto da Covid-19 e se coloca contra medidas de distanciamento social, atitudes que culminaram na demissão de Luiz Henrique Mandetta do Ministério da Saúde e, na semana passada, em uma marcha com empresários ao Supremo Tribunal Federal.

A medida provisória gerou questionamentos em setores do Judiciário e do Congresso. Partidos de oposição e entidades decidiram contestá-la no Supremo —e parlamentares acusam Bolsonaro de querer se eximir de responsabilidades na atual crise.

Ministros do STF ouvidos em caráter reservado pela Folha consideraram a MP vaga e inconstitucional.

O presidente do TCU (Tribunal de Contas da União), José Mucio Monteiro, afirmou que ela estimula mal-intencionados e que não pode haver salvo-conduto quando os gastos com a pandemia já consumiram mais de R$ 600 bilhões.

A MP 966 estabelece que somente poderão ser responsabilizados, nas esferas civil e administrativas, os agentes públicos que "agirem ou se omitirem com dolo ou erro grosseiro".

A proteção vale para responsabilizações por medidas adotadas, direta ou indiretamente, no âmbito do enfrentamento da emergência sanitária e no combate aos efeitos econômicos decorrentes da Covid-19.

Apesar de dizer que lamenta as mortes devido à Covid-19, Bolsonaro tem dado declarações em caráter irônico quando questionado sobre as perdas humanas. Como na ocasião em que afirmou não ser coveiro ou quando disse: "E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre."

Para definir responsabilizações, a MP define erro grosseiro como "erro manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia".

Para isso, devem ser levados em conta, dentre outros pontos, os "obstáculos e as dificuldades reais do agente público", a "complexidade da matéria e das atribuições exercidas", a "circunstância de incompletude de informações na situação de urgência ou emergência", além do "contexto de incerteza acerca das medidas mais adequadas para enfrentamento da pandemia e das suas consequências, inclusive as econômicas".

No texto publicado nesta quinta estão as assinaturas de Bolsonaro e dos ministros Paulo Guedes (Economia) e Wagner Rosário (Controladoria-Geral da União).

Segundo relataram interlocutores à Folha, desde o início da crise da Covid-19 existe preocupação entre técnicos do governo sobre possíveis responsabilizações por medidas tomadas na pandemia. Eles argumentam, por exemplo, que o sistema de compras públicas teve de ser modificado e que é preciso algum tipo de proteção para processos de caráter emergencial.

Guedes falou sobre a MP em teleconferência de Bolsonaro com o presidente da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), Paulo Skaf, e grandes empresários.

"No Brasil, se você quiser soltar dinheiro para governador, você solta R$ 100 bilhões em dez minutos, todo mundo aprova. Mas se quiser soltar R$ 1 bilhão para uma empresa privada, exatamente em função do que já aconteceu lá atrás, que teve roubalheira, ninguém quer assinar. O próprio funcionário público não quer assinar. Então nós tivemos que lançar agora uma medida para blindar, a MP 966, porque o próprio funcionário do BNDES não queria assinar", afirmou Guedes.

"Eu dizia 'vocês deram 1 bilhão para o porto de Mariel [em Cuba], para Venezuela e Sete Brasil, agora não pode dar R$ 10 milhões para o setor privado?'", completou o ministro da Economia.

Também existe receio, segundo relatos à Folha, de responsabilização direta do presidente por alguma medida tomada na crise, o que poderia ser usado no futuro, por exemplo, como base para processo de impeachment.

Em outro trecho que blinda eventuais erros cometidos, a MP estabelece que o mero nexo causal entre conduta e o resultado danoso não implica responsabilização.

Por último, o texto também diz que a responsabilização por opinião técnica não se estende de forma automática ao decisor que a tiver adotado, a não ser quando houver conluio entre os agentes ou se estiverem presentes elementos suficientes para aferir o "dolo ou o erro grosseiro" da opinião técnica.

Questionado sobre a MP na manhã desta quinta, Bolsonaro se limitou a dizer, sem dar detalhes: "Vou ver isso aí quando chegar lá [no Palácio do Planalto] agora".

No início da noite, afirmou que o Congresso vai aprimorar o texto e que a ideia foi do presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto.

A ABI (Associação Brasileira de Imprensa) entrou com ação direta de inconstitucionalidade no STF contra a medida.

O presidente da entidade, Paulo Jeronimo de Sousa, disse que a MP, diante do desrespeito de Bolsonaro às recomendações de órgãos de saúde, dá "nítida impressão de ser uma tentativa de conseguir um excludente de ilicitude para manter um comportamento irresponsável e nocivo à coletividade, concedendo-se uma autoanistia".

O MBL (Movimento Brasil Livre) e partidos como Rede e Cidadania também decidiram contestá-la judicialmente.

Um ministro do Supremo ouvido pela Folha chegou a questionar se a nova norma não irá inviabilizar qualquer punição a gestores públicos.

Seria praticamente impossível, segundo ele, comprovar todos os elementos que caracterizariam o que a MP trata como "erro grosseiro".

Membros do Supremo reconhecem que é necessário dar segurança jurídica aos gestores, mas é preciso manter claros os limites e responsabilidades dos governantes.

Afirmam que a flexibilização da Lei de Responsabilidade Fiscal autorizada em decisão monocrática do ministro Alexandre de Moraes e a posterior aprovação da PEC do Orçamento de Guerra já garante liberdade fiscal para as três esferas de governo destinarem recursos contra a pandemia.

"O governo não pode dar salvo-conduto para servidor. Não dá pra aceitar que o grupo que pode ser responsabilizado esteja legislando [em causa própria] para não ser punido se for o caso", disse à Folha José Mucio Monteiro, do TCU.

Bolsonaro assinou a medida um dia após os ministros do TCU determinarem, por unanimidade, abertura de uma ampla auditoria no pagamento de R$ 600 aos cerca de 60 milhões de brasileiros que já receberam a ajuda emergencial. A decisão foi tomada devido a irregularidades na distribuição do benefício.

Além desse processo, o TCU conduz outros 26 relacionados ao monitoramento das despesas do governo na crise.

"Admitimos que durante a pandemia erros sejam cometidos com a intenção de acertar, mas não podemos, por causa da emergência, abrir mão do controle e permitir que o erro seja a regra", disse Mucio.

PSOL e PSB protocolaram requerimentos na Câmara em que pedem a devolução da medida provisória. "O Brasil tem um presidente que atua em interesse próprio e de maneira inconstitucional, pois uma lei não pode mudar o que a Constituição já determina em relação a como agentes públicos respondem por suas ações", disse Alessandro Molon (RJ), deputado que é líder do PSB.

Ex-líder do governo no Congresso, a deputada Joice Hasselmann (SP), líder do PSL, disse que a MP era uma "verdadeira licença para matar assinada pelo presidente".

No Senado, líderes partidário também se articulam pela retirada da MP. Para a líder do Cidadania, senadora Eliziane Gama (MA), a medida editada comete um erro ao, indiretamente, legitimar o uso da cloroquina, medicamento defendido por Bolsonaro.

O líder do MDB na Casa, Eduardo Braga (TO), defende punições "severas" em caso de irregularidades que envolvam agentes públicos atuantes no combate à pandemia. Ele sugere mudar o texto da MP, mas acha que a devolução será acordada por todos os líderes.

O que diz a MP 966

  • Texto estabelece que só poderão ser responsabilizados, nas esferas civil e administrativa, os agentes públicos que “agirem ou se omitirem com dolo ou erro grosseiro”
  • Medida considera ações adotadas, direta ou indiretamente, no contexto do enfrentamento da emergência sanitária da Covid-19 e no combate de seus efeito econômicos
  • Erro grosseiro é definido como “erro manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia”
  • A medida é assinada pelo presidente Jair Bolsonaro e pelos ministros Paulo Guedes (Economia) e Wagner Rosário (Controladoria-Geral da União)

O que Bolsonaro já fez para contrariar ações contra doença

Protestos
O presidente participou de atos contra o STF, o Congresso e medidas de isolamento social. No dia 15 de março, interagiu com manifestantes que se aglomeravam em frente ao Palácio do Planalto.

Bolsonaro tocou apoiadores e manuseou celulares para fazer selfies. Entre eles, havia idosos, grupo de risco do coronavírus. No dia 19, um protesto em frente ao quartel-general do Exército também
gerou aglomerações.

O presidente discursou em cima da caçamba de uma caminhonete

Passeios
Em 29 de março, o presidente saiu pelas ruas de Brasília defendendo a volta da população ao trabalho.

O giro ocorreu um dia depois de o então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, afirmar que o isolamento vertical (restrito a grupos de risco) defendido por Bolsonaro estava descartado como forma de enfrentar a pandemia.

Em 9 de abril, o chefe do Executivo voltou a circular, dessa vez para ir a uma padaria. Acompanhado do ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas, e de um de seus filhos, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), o presidente comeu um sonho e cumprimentou clientes

Moto aquática 
Em 9 de maio, um sábado, horas após afirmar em redes sociais que era falso o convite para um churrasco no Palácio da Alvorada que ele mesmo havia anunciado, Bolsonaro passou parte da tarde em um passeio de moto aquática no lago Paranoá, em Brasília. No mesmo dia, o país ultrapassou a marca de 10 mil mortos pela Covid-19

Relembre falas do presidente sobre a pandemia

Histórico de atleta e gripezinha (24.mar) 
Em pronunciamento em rede nacional

“Pelo meu histórico de atleta, caso fosse contaminado pelo vírus, não precisaria me preocupar, nada sentiria ou seria acometido, quando muito, de uma gripezinha ou resfriadinho”

Brasileiro não pega nada (26.mar) 
Durante entrevista em frente ao Alvorada

“O brasileiro tem que ser estudado. Ele não pega nada. Você vê o cara pulando em esgoto ali. Ele sai, mergulha e não acontece nada com ele”

Coveiro (20.abr) 
Após ser questionado pela Folha sobre número aceitável de mortes
“Eu não sou coveiro”

E daí? (28.abr) 
Ao ser questionado sobre novo recorde de mortes em 24 horas

“E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê?”

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