Bolsonaro incentiva atos antidemocráticos, isso é descabido, diz chefe da Lava Jato de SP

Procuradora Janice Ascari diz que recente mudança na Saúde é sintoma de que as coisas vão mal

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São Paulo

Quando a procuradora-regional da República Janice Ascari assumiu o comando da Lava Jato paulista, em outubro do ano passado, os procuradores ficavam na mesma sala, analisavam documentos, faziam pesquisas, ouviam testemunhas. Tudo lado a lado. Mas veio a pandemia e agora estão todos em casa.

A Lava Jato, segundo ela, não parou. "Continuamos as nossas investigações, evidentemente com as necessárias adaptações", diz.

A preocupação de Janice aparece quando analisa como o país lida com a crise do coronavírus. A troca no Ministério da Saúde é, para ela, sintoma de que as coisas vão mal. "É o que de pior poderia acontecer. As instituições não estão funcionando adequadamente."

Ela critica o presidente Jair Bolsonaro, que tem aparecido em manifestações antidemocráticas. "No meu ver, ele incentiva esse tipo de coisa, o que é descabido para uma pessoa que deveria presidir o país para todos os brasileiros, e não para um grupo."

A procuradora-regional da República Janice Ascari, chefe da Lava Jato em São Paulo
A procuradora-regional da República Janice Ascari, chefe da Lava Jato em São Paulo - Eduardo Knapp/Folhapress

Nos últimos dias, aconteceram protestos com pautas antidemocráticas. Isso preocupa o Ministério Público? Existem investigações sendo tocadas pela PGR [Procuradoria-Geral da República] e pelo Ministério Público Federal do Distrito Federal. É inaceitável que aconteça um protesto silencioso e tranquilo do pessoal da saúde [enfermeiros de Brasília] e cheguem aquelas pessoas para tentar agredir, ameaçar quem estava ali fazendo seu protesto com todas as cautelas, de máscara e espaçados.

É muito preocupante, porque as pessoas se sentem autorizadas a transgredir a lei. O direito de reunião, de associação, é garantido pela Constituição, mas é pacífico. A partir do momento em que você tem uma reunião pacífica e que outros venham interferir nessa manifestação pacífica é uma lesão a uma garantia constitucional.

E a pauta de pedir fim do Congresso e fim do Supremo é inominável. Os membros do Ministério Público estão cuidando disso em processos de investigação. Só que nem sempre o ritmo da investigação é o do Twitter.

E como a senhora vê a participação do presidente nesses atos? No meu ver, ele incentiva esse tipo de coisa, o que é descabido para uma pessoa que deveria presidir o país para todos os brasileiros e não para um grupo. E nesse momento não é para se reunir. O Pará decretou "lockdown", o Maranhão decretou "lockdown". Estão morrendo quase 2.000 pessoas em coisa de três e ou quatro dias. As pessoas não estão levando a sério.

No Brasil, além da crise da pandemia, há também a política. Como a senhora vê isso? É o pior cenário para todos os brasileiros. Se por um lado você vê essa instabilidade das instituições como um todo, por outro lado você vê realçadas as diferenças sociais. Tem gente que não pode lavar as mãos porque não tem água encanada e saneamento básico. E esse é um problema recorrente. E as diferenças sociais gritam muito nessa hora.

No meio da pandemia o país mudou um ministro da Saúde porque ele insistia em seguir recomendações dos organismos de Saúde e isso o fez se chocar com presidente. É o que de pior poderia acontecer. As instituições não estão funcionando adequadamente. Você tem normas internacionais, tem exemplos de outros países e faz o contrário? Não pode. Estamos vendo os índices [de mortos e infectados] crescerem. Já são mais de 600 mortes por dia. Na Itália, quando isso começou, o que eles fizeram? Todo mundo para a casa. Aqui o povo está fazendo churrasco.

E é claro que eu entendo a situação dos autônomos e dos que hoje precisam contar com uma rede de solidariedade de pessoas que doam alimentos, por exemplo. Mas e a política pública para isso? Essas pessoas estão contando com rede de solidariedade privada. O auxílio de R$ 600, um mês depois e poucas pessoas receberam. As pessoas têm fome, precisam comer.

O presidente tem descumprido orientações, inclusive do próprio Ministério da Saúde, e circulado pelas ruas causando aglomerações. Cabe alguma medida para que ele seja responsabilizado por atos que possam colocar em risco à população? Ele envia sinais trocados para a população. A população fica confusa e isso pode ter um preço muito alto a pagar num futuro bastante próximo. Tomara que não, mas a consequência pode ser bem expressiva para a população. Isso já foi, inclusive, objeto de análise pelo procurador-geral da República.

Mas nesse caso não houve nenhuma ação. Não importa a minha opinião, juridicamente quem fala pelo Ministério Público é o procurador-geral da República. A minha opinião como cidadã acaba não importando sobre isso.

Como a senhora vê o papel da PGR no enfrentamento ao coronavírus? A PGR tomou medidas concretas e vem seguindo as orientações do Ministério da Saúde. Colocou os servidores e os procuradores em teletrabalho. E, em relação ao aspecto administrativo interno, tomou todas as providências, como melhorar a linha de comunicação, as ferramentas, nossa secretaria de tecnologia tem emitido orientações sobre reuniões por videoconferência.

E tem esse aspecto do combate [sobre] qual é o auxílio que o MPF pode dar ao combate à pandemia. Esse gabinete integrado que ele criou no começo da crise, esse grupo que está pensando algumas soluções para poder carimbar as verbas de acordos de colaboração e leniência para serem utilizados única e exclusivamente em equipamentos de proteção individual, equipamentos médicos e no combate à Covid-19 de um modo geral.

Como a senhora viu a saída do ministro Sergio Moro do governo? O Moro fez uma escolha quando ele abandonou a magistratura. Então, faz parte da escolha dele. Só isso.

Ele saiu acusando o presidente de tentar interferir na Polícia Federal. Esse tipo de atitude [sair do governo atacando] não é incomum. Agora cabe ao procurador-geral da República ou ao procurador que tiver atribuição para isso apurar o caso. Esse é o nosso dia a dia. Não é o fato de ser ele que vai ser diferente. A gente recebe a comunicação de delitos, abre investigação e vamos ver no que dá.

A senhora teme interferência na PF? Eu nem tenho essa avaliação porque sou procuradora regional e estou há 18 anos na segunda instância. Do ano passado para cá que comecei a trabalhar na primeira instância por causa da Lava Jato. Não sei da política interna deles.

O que eu espero é que o novo ministro da Justiça continue a dar força para as superintendências poderem continuar organizadas. O Ministério Público, que é o destinatário dessas investigações, pode estar certo que estará bem atento a tudo isso.

A senhora está a frente da Lava Jato em SP durante uma pandemia. Qual o papel a Lava Jato pode ter neste momento? O nosso trabalho continua inalterado. Continuamos as nossas investigações, evidentemente com as necessárias adaptações. Não estamos fisicamente mais no prédio, o contato com advogados, jornalistas e os outros colegas têm sido feitos exclusivamente por videoconferência ou por telefone. O único ponto de convergência entre a questão da pandemia e a Lava Jato são os valores dos acordos que estão sendo destinados ao combate à Covid-19.

Há 20 dias, fizemos um aditamento num acordo feito bem antes da pandemia em que o colaborador tem que prestar serviço à comunidade. Ele não tem condições de prestar agora por conta do isolamento. Então, para ele não ficar inadimplente, fizemos um aditamento ao acordo, enviamos para a Justiça e convertemos essa pena em dinheiro e produto. Durante um período ele vai doar 25 mil litros em álcool em gel [para a Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo].

Como o coronavírus impactou o trabalho do Ministério Público Federal? Nós estamos em casa desde o dia 16 de março. Então a gente tem os nossos arquivos, fazemos a reuniões periódicas com videoconferência. Temos feito dessa forma e com mensagens trocadas o dia inteiro como se a gente tivesse trabalhando um do lado do outro, como costuma ser.

Mas em termos de força-tarefa é ruim no começo. Porque a gente está acostumado a ficar todo mundo sentado na mesma sala, trabalhando junto como se fosse uma reunião. E isso agora, com a gente distanciado fisicamente, quebrou um pouco o ritmo de trabalho. Mas a gente está se adaptando com essas ferramentas tecnológicas à disposição.

Raio-X

Janice Agostinho Barreto Ascari, 59
Formada em direito pela FMU, ingressou no Ministério Público Federal em 1992. Foi promovida à procuradora regional da República em 2002. Assumiu a Operação Lava Jato de São Paulo em outubro de 2019

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