Depoimento: Desculpe o olhar torto, Gilberto, foi puro erro de interpretação de texto

Jornalista Kátia Lessa relembra seu primeiro contato com o jornalismo por meio de Gilberto Dimenstein

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Kátia Lessa

Quando eu tinha 14, 15 anos, estudava numa escola que fazia uma parceria com um projeto do Gilberto Dimenstein chamado Aprendiz.

Os três anos de colegial eram dividido em exatas, humanas e biológicas, e eu era uma aluna de biológicas porque achava que seria médica, apesar de sempre adorar e me dar muito bem também com as matérias de humanas.

Um dia, o colégio anunciou que faria uma prova para escolher três alunos de humanas que teriam a chance de passar um período no Aprendiz.

O jornalista Gilberto Dimenstein, em 2012
O jornalista Gilberto Dimenstein, em 2012 - Gabo Morales/Folhapress

Encorajada pela minha professora de redação, que vivia me dizendo que eu deveria pensar sobre prestar vestibular para a área de artes ou comunicação, entrei na sala e fiz o teste.

À época eu tinha pânico de provas e fazer aquilo foi uma tortura brutal. Me preparei dias, não dormi, treinei respirações para acalmar, um horror. O fato é que encarei a prova, escrevi minha redação e passei. Porém, como havia burlado a regra por ser aluna de biológicas, Gilberto não me deixou participar do programa.

Fiquei arrasada, argumentei, expliquei para ele que queria fazer aquilo porque não sabia como funcionava aquele universo, que não conhecia absolutamente ninguém da área de jornalismo, que estava em dúvida para o vestibular etc. Ele calmamente respondeu: "Fique tranquila, você é curiosa, você não precisa".

No ano seguinte, mudei para humanas, passei a ler o dobro do que eu lia, estudar coisas que a escola não ensinava e buscar mais sobre o que era comunicação.

Guardei mágoa do Gilberto por aaaaaanos a fio e lia tudo que ele escrevia para tentar entender por que ele tinha feito aquilo comigo e por que "não gostava" dos alunos de biológicas.

Mais de dez anos depois, formada em duas faculdades de comunicação, recebi o convite para ter uma coluna na Folha.

No meu primeiro dia no jornal, quando o elevador abriu a porta, ele foi a primeira pessoa que eu vi. Não consegui nem me mover de tantas coisas que eu senti. Foi ridículo.

Olhei para ele (que obviamente não sabia quem eu era), senti um alívio imenso, dei um sorriso e fui procurar a minha mesa. Só naquele segundo, a menina de 15 anos entendeu que ele sabia mais de mim do que eu mesma, e que aquilo tinha sido um elogio, e não um desdém.

A mágoa passou, minha forma de ler seus textos mudou e a admiração só cresceu. E bom, ter estudado toda aquela fisiologia e botânica tem sido bem útil para uma jornalista em tempos de pandemia e apocalipse ambiental.

Hoje, com a notícia de sua morte, me deu vontade de agradecer e pedir desculpas por tanto tempo de olhar torto. Foi puro erro de interpretação de texto, Gilberto. Me dê um desconto, colega, eu era de biológicas.

Descansa em paz e meus profundos sentimentos aos familiares.

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