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Rafael Mafei Rabelo Queiroz

Medo da maldição dos três impeachments é infundado

Não cabe deixar de usar o recurso para preservar a democracia que o presidente poupado por nosso vacilo trabalha para destruir

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Rafael Mafei Rabelo Queiroz

Caso Jair Bolsonaro venha a sofrer o terceiro impeachment de nossa história, que imagem sobraria da democracia brasileira? Essa questão precisa ser considerada nos debates sobre a conveniência e oportunidade de Bolsonaro ser afastado do cargo pelos crimes de responsabilidade que pratica.

O ano de 2016 deixou alguns de nós deseducados: impeachments não são festas da democracia. São traumas que devemos evitar. Devem ser usados apenas quando não há alternativa eficaz para dar cabo a abusos de poder presidencial. Mas quando esse é o caso, o impeachment é mandatório: não cabe deixar de usá-lo para preservar a democracia que o presidente poupado por nosso vacilo trabalha para destruir.

O presidente Bolsonaro aponta para o vice, general Hamilton Mourão, durante evento no Palácio do Planalto
O presidente Bolsonaro aponta para o vice, general Hamilton Mourão, durante evento no Palácio do Planalto - Pedro Ladeira - 29.abr.20/Folhapress

Alguns dirão que apenas o Panamá, entre 1951 e 1968, teve três presidentes afastados por impeachment em intervalo de tempo tão curto quanto aquele que separaria a queda de Collor, em 1992, do eventual afastamento de Bolsonaro, talvez ainda em 2020.

Essa matemática é enganosa: impeachments são apenas um dos mecanismos de remoção involuntária de presidentes em graves crises.

Ao lado deles, há os velhos golpes militares, bem como os afastamentos sem grande preocupação com fundamentos convincentes: assim fizeram com o equatoriano Abdalá Bucaram (1997), tido por mentalmente incapaz; o paraguaio Fernando Lugo (2012), sumariamente afastado em um processo relâmpago; ou mesmo nosso Café Filho (1955), cuja volta ao cargo após uma licença médica foi barrada porque o Congresso o viu em situação de “impedimento”, preso que estava em seu apartamento sob ameaça militar.

Isso sem falar em arranjos variados para constranger a renúncias, que não raro envolvem ameaças de impeachment, como no recente caso de Pedro Pablo Kuczynski, no Peru (2018). Todos devem entrar na conta.

Por esse olhar mais amplo, o terceiro impeachment não nos faria fruta exótica no pomar. Se adicionarmos à lista homicídios e suicídios de presidentes no cargo como desfecho de crises políticas, o Brasil, mesmo com o afastamento de Bolsonaro, ficaria em posição confortável entre seus parceiros continentais, com menos interrupções presidenciais involuntárias do que Chile e Argentina.

Mas se é infundado o medo da maldição dos três impeachments, não é descabida a reflexão sobre o que nos leva ao dilema no presente.

Uma primeira hipótese: grande parte da angústia deve-se ao fato de que nosso último impeachment é não apenas recente, mas de legitimidade polêmica. O afastamento de Dilma Rousseff, motivado por irregularidades financeiras que até hoje muita gente não entende, ainda divide eleitores e estudiosos. Não fosse por isso, talvez já tivéssemos acionado a medida extrema contra Jair Bolsonaro.

Para quem rumina incerteza sobre a legitimidade do impeachment de 2016, a presidência de Bolsonaro assume um quê de penitência: ao sofrê-la, vivemos a expiação de ter a carne cortada por um novo crime de responsabilidade a cada semana.

Esperamos, talvez, redimir nossa democracia do vício do uso açodado da medida contra uma presidente cujo desempenho deixou muito a desejar, mas que nem de longe ameaçava a democracia como Bolsonaro ameaça: no ocaso de seu governo, Dilma não quis ou não pôde entregar ingerência sobre a Lava Jato, na qual a Polícia Federal era peça fundamental, como moeda de troca a quem se voltou contra ela no Congresso —muitos deles parlamentares cujo coração palpitava quando a campainha tocava às seis da manhã.

Agora, Bolsonaro procura um caminho jurídico para viabilizar sua confessa intenção de ingerência promíscua na PF.

Por reconfortante que seja, essa penitência ameaça nossa democracia de morte. Do outro lado não estará o paraíso, e sim uma sociedade onde minguarão nossas mais básicas liberdades civis.

Uma segunda hipótese sobre o nosso dilema: o Brasil, no contexto da redemocratização latino-americana, é exemplo singular de país que escolheu acolher ideologias políticas antidemocráticas. Essa é a jabuticaba que deveria nos incomodar.

Enquanto nossos vizinhos não mediram esforços em usar o peso simbólico de julgamentos e tribunais para acertar contas com quem tratorou liberdades e violou a dignidade de opositores, professores, jornalistas e estudantes, nós optamos pela tolerância democrática com quem não tolera a democracia.

Dessa semente cresceu o bolsonarismo, o fruto do nosso pecado político original. Há vários presidentes de direita no continente: Jair constrange a todos festejando ditadores cujos nomes são proscritos em seus países. Cresceu em um ambiente que não lhe ensinou a diferença básica entre a política, que comporta múltiplas ideologias, e sua antipolítica, que nega legitimidade à divergência.

É trágico que nosso último impeachment seja tão recente, mas não faz sentido que essa circunstância se torne impeditiva de recorrermos novamente à medida se necessário for. Um presidente descomprometido com a democracia e com a Constituição farejará nossa recalcitrância à distância e não hesitará em aproveitar-se dela.

Rafael Mafei Rabelo Queiroz

Professor da Faculdade de Direito da USP

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