Ao rebater o STF, Bolsonaro ignora rotina de ameaças e distorce ações do governo; leia íntegra comentada

Após operações contra fake news e atos antidemocráticos, presidente diz que tomará medidas legais

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São Paulo

O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) reagiu por escrito a ações do STF (Supremo Tribunal Federal) na noite desta terça-feira (16). Em mensagem publicada em suas redes sociais, o presidente disse que não pode "assistir calado enquanto direitos são violados e ideias são perseguidas".

Sem mencionar a corte, ele afirmou ter presenciado abusos nas últimas semanas, em referência a operações desencadeadas por dois inquéritos em curso no STF: o das fake news, que apura ameaças à corte e aos ministros, e o dos atos antidemocráticos. Ambos atingiram aliados políticos de Bolsonaro.

Segundo o presidente, o histórico do governo prova que sempre esteve "ao lado da democracia e da Constituição brasileira". De acordo com ele, até o momento nenhuma medida demostra qualquer apreço a autoritarismo.

"Os abusos presenciados por todos nas últimas semanas foram recebidos pelo governo com a mesma cautela de sempre, cobrando, com o simples poder da palavra, o respeito e a harmonia entre os Poderes. Essa tem sido nossa postura, mesmo diante de ataques concretos", escreveu.

O mandatário disse ainda, sem entrar em detalhes, que tomará "todas as medidas legais possíveis para proteger a Constituição e a liberdade dos brasileiros".

No texto, Bolsonaro ignora rotina de ameaças à ordem democrática e distorce ações do governo. Leia íntegra comentada.

"O histórico do meu governo prova que sempre estivemos ao lado da democracia e da Constituição brasileira. Não houve, até agora, nenhuma medida que demonstre qualquer tipo de apreço nosso ao autoritarismo, muito pelo contrário."

Ao contrário do que afirma, Bolsonaro vem tomando medidas que são entendidas como crimes de responsabilidade, como a sonegação de informações sobre os casos e mortes de vítimas da Covid-19.

O presidente, por exemplo, já ameaçou dar uma “canetada” para derrubar medidas de isolamento adotadas por governadores e prefeitos, iniciativa que acabou rechaçada pelo Supremo antes mesmo de ser tomada.

Bolsonaro também participou de atos que pediam golpe militar no Brasil, enquanto seus apoiadores mencionaram que o artigo 142 da Constituição prevê a possibilidade de intervenção, hipótese contestada por juristas e pela OAB (Ordem dos Advogados do Brasil).

"Em janeiro de 2019, após vencermos nas urnas e colocarmos um fim ao ciclo PT-PSDB, iniciamos uma escalada do Brasil rumo à liberdade, trabalhando por reformas necessárias, adotando uma economia de mercado, ampliando o direito de defesa dos cidadãos."

Em ato assinado em abril do ano passado, Bolsonaro disse que poderia extinguir dezenas de colegiados da administração federal com a participação da sociedade civil.

Grupos da lista teriam temas como relações de trabalho, Previdência, políticas indigenistas, transportes e drogas, além de direitos do idoso e da população LGBT. Dois meses depois, o governo reduziu a participação da sociedade no Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad).

Das reformas prometidas, o presidente segurou a administrativa e não mencionou a reforma tributária desde o início do governo. A única que efetivamente se concretizou foi a da Previdência, com um impulso do Congresso Nacional, que acabou assumindo o protagonismo da pauta.

Bolsonaro mencionou ainda o direito de defesa dos cidadãos, que tem sido tratado em seu governo sob a ótica da flexibilização de porte e posse de armas. "Eu quero todo mundo armado. Povo armado jamais será escravizado", disse ele na reunião ministerial de abril que teve o vídeo divulgado por decisão do STF.

Segundo pesquisa Datafolha, 72% dos entrevistados discordam do que disse o mandatário.

"Reduzimos também todos os índices de criminalidade, eliminamos burocracias, nos distanciamos de ditaduras comunistas e firmamos alianças com países livres e democráticos. Tiramos o Estado das costas de quem produz e sempre nos posicionamos contra quaisquer violações de liberdades."

No primeiro ano de governo, a China passou de ameaça comunista a aliada estratégica do governo Bolsonaro. Pequim consolidou sua posição de principal parceiro comercial do Brasil, e o regime liderado por Xi Jinping prometeu novos investimentos bilionários no país.

Já os índices de violência, segundo balanço publicado pela Folha em fevereiro, vêm seguindo tendência de queda desde 2018, um ano antes da posse de Bolsonaro. As estatísticas consolidadas pelo Ministério da Justiça apresentaram em 2019 redução de 22% nos homicídios dolosos e latrocínios, entre outros crimes.

A segurança pública é tarefa de responsabilidade majoritária dos estados. Na atual gestão, o então ministro Sergio Moro (Justiça) reivindicou parte do mérito pela redução da criminalidade, argumentando que ações como o isolamento de chefes de facções contribuíram para a melhora dos indicadores.

"O que adversários apontam como 'autoritarismo' do governo e de seus apoiadores não passam de posicionamentos alinhados aos valores do nosso povo, que é, em sua grande maioria, conservador. A tentativa de excluir esse pensamento do debate público é que, de fato, é autoritária."

Horas antes da publicação de Bolsonaro, o decano do STF, ministro Celso de Mello, disse ser “inconcebível” a sobrevivência de “resíduo de forte autoritarismo” no Estado brasileiro. Sem citar diretamente o presidente, o magistrado criticou ameaças feitas por Bolsonaro e seus ministros de que o governo pode descumprir eventualmente decisões da corte.

"Vale lembrar que, há décadas, o conservadorismo foi abolido de nossa política, e as pessoas que se identificam com esses valores viviam sob governos socialistas que entregaram o país à violência e à corrupção, feriram nossa democracia e destruíram nossa identidade nacional."

A corrupção, problema que Bolsonaro critica, é tratada na prática de maneira pouco enfática. Ao ser confrontado com suspeitas envolvendo aliados, amigos e familiares, o presidente já criticou a imprensa, o Ministério Público e o Judiciário, enquanto os alvos foram mantidos nos cargos.

Em novembro de 2018, após ser eleito, Bolsonaro afirmou que ministros alvo de acusações contundentes deveriam deixar o governo, o que não se concretizou. O ministro Marcelo Álvaro Antônio (Turismo), por exemplo, continua no governo após ter sido indiciado pela Polícia Federal e denunciado pelo Ministério Público de Minas sob acusação de envolvimento no caso das candidaturas laranjas do PSL.

A eleição de Bolsonaro, impulsionada por promessas de combate à corrupção, não alterou a percepção sobre o problema no seu primeiro ano de governo, segundo o IPC (Índice de Percepção da Corrupção).

Desde que assumiu a Presidência, Bolsonaro contesta ações de órgãos de controle para investigar seu núcleo familiar, por exemplo. O senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) é investigado em um esquema de "rachadinhas" na Assembleia do Rio. E o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ) é suspeito de abrigar funcionários fantasma na Câmara Municipal do Rio.

"Suportamos a todos esses abusos sem desrespeitar nenhuma regra democrática, até mesmo quando um militante de esquerda, ex-membro de um partido da oposição, tentou me assassinar para impedir nossa vitória nas eleições, num atentado que foi assistido pelo mundo inteiro."

Bolsonaro pressionou a Polícia Federal sobre as investigações do atentado contra ele a partir da tese de que Adélio Bispo o esfaqueou a mando de terceiros. A PF concluiu que Adélio agiu sozinho, e a Justiça arquivou o inquérito. O acusado foi reconhecido como autor do crime, mas não pôde ser responsabilizado penalmente por ter uma doença mental, o transtorno delirante persistente. Ele está preso.

"Do mesmo modo, os abusos presenciados por todos nas últimas semanas foram recebidos pelo governo com a mesma cautela de sempre, cobrando, com o simples poder da palavra, o respeito e a harmonia entre os Poderes. Essa tem sido nossa postura, mesmo diante de ataques concretos."

O protesto com fogos de artifício disparados em direção ao prédio do STF no sábado (13) foi promovido pelo grupo armado de extrema direita 300 do Brasil, formado por apoiadores do governo. Bolsonaro não se manifestou publicamente sobre o episódio.

Ao receber a notícia de que a PGR (Procuradoria-Geral da República) deveria se manifestar sobre o pedido de partidos e parlamentares de oposição para que seu celular fosse apreendido e periciado, Bolsonaro afirmou que jamais entregaria o aparelho e que uma decisão judicial nesse sentido seria "uma afronta".

O ministro-chefe do GSI (Gabinete de Segurança Institucional), general Augusto Heleno, divulgou nota na ocasião afirmando que uma eventual apreensão poderia ter "consequências imprevisíveis".

A PGR, no entanto, se posicionou contra a medida. O pedido da oposição era para que os dados fossem apurados no inquérito sobre tentativa de interferência do presidente na PF, aberto após Sergio Moro pedir demissão do Ministério da Justiça e Segurança Pública, em abril, com graves acusações a Bolsonaro.

Em outro caso caso, um dia após uma operação policial ordenada pelo STF ter atingido empresários, políticos e ativistas bolsonaristas investigados no inquérito das fake news, Bolsonaro criticou a investigação e disparou queixas contra a corte.

“Não teremos outro dia como ontem, chega”, disse. Em outros trechos, afirmou que "ordens absurdas não se cumprem" e que "temos que botar limites". "Acabou, porra!", gritou.

"Queremos, acima de tudo, preservar a nossa democracia. E fingir naturalidade diante de tudo que está acontecendo só contribuiria para a sua completa destruição. Nada é mais autoritário do que atentar contra a liberdade de seu próprio povo."

O vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ) escreveu em setembro do ano passado, em uma rede social, que por vias democráticas as mudanças rápidas desejadas no país não aconteceriam. No mês seguinte, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) citar a possibilidade de "um novo AI-5" se a esquerda, em suas palavras, radicalizar.

Na época, o general Augusto Heleno buscou minimizar a declaração do deputado e filho do presidente. O chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República afirmou ao Estado de S.Paulo que editar "um novo AI-5", como sugeriu o parlamentar, exigiria estudos.

Outro comportamento de cunho autoritário atribuído a Bolsonaro é sua campanha de enfrentamento e enfraquecimento da imprensa. Além de atacar o trabalho de jornalistas, xingar repórteres e atribuir a veículos de comunicação a pecha de difusores de fake news, o presidente já mandou profissionais calarem a boca e insultou a jornalista Patrícia Campos Mello, da Folha, com uma insinuação sexual.

Bolsonaro também já determinou o fim da publicação de balanços de empresas em jornais (ato depois derrubado pelo Congresso), excluiu a Folha da relação de veículos exigidos em um processo de licitação da Presidência (posteriormente, ele recuou e revogou o edital) e ameaçou ao menos duas vezes não renovar a concessão da TV Globo.

"Só pode haver democracia onde o povo é respeitado, onde os governados escolhem quem irá governá-los e onde as liberdades fundamentais são protegidas. É o povo que legitima as instituições, e não o contrário. Isso sim é democracia."

O presidente bateu de frente com governadores, principalmente em relação às medidas de combate ao coronavírus, que incluem restrição de circulação. Bolsonaro assinou decretos para driblar decisões estaduais e municipais, fez pronunciamento em que criticou o fechamento de escolas e manteve contato com pessoas na rua, na maioria das vezes sem usar máscara.

Ele ainda lançou a campanha "O Brasil Não Pode Parar" (posteriormente vetada pelo ministro Luís Roberto Barroso, do STF) e e disse que estava pensando em fazer um decreto para população poder trabalhar. A fala ocorreu após semana em que oscilaram embates e aparentes entendimentos em reuniões com governadores.

Bolsonaro tem prejudicado a transparência de dados que são disponibilizados à população. Houve diversas tentativas de burlar a Lei de Acesso à Informação. Após deixar de divulgar números oficiais da Covid-19, o governo federal excluiu do relatório anual dos direitos humanos, os indicadores de violência policial praticada no Brasil no ano de 2019, por entender que há "inconsistência nos dados coletados".

"Luto para fazer a minha parte, mas não posso assistir calado enquanto direitos são violados e ideias são perseguidas. Por isso, tomarei todas as medidas legais possíveis para proteger a Constituição e a liberdade dos brasileiros."

Frases anticonstitucionais e antidemocráticas têm sido pauta constante no governo, com afirmações feitas pelo presidente e por seus filhos. Além de Eduardo Bolsonaro ter cogitado a reedição do AI-5, o presidente e seu entorno minimizam violações de direitos durante a ditadura militar (1964-1985).

Bolsonaro afirmou, em março deste ano, que "não houve ditadura no Brasil" e que o regime teve apenas alguns "probleminhas".

Após reclamar sobre a atuação da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) na investigação da facada que sofreu em 2018, Bolsonaro disse que poderia explicar ao presidente da entidade, Felipe Santa Cruz, como o pai dele desapareceu durante a ditadura. "Ele não vai querer ouvir a verdade", afirmou.

Bolsonaro ainda provocou Michelle Bachelet, comissária da ONU (Organização das Nações Unidas) para direitos humanos. Após a ex-presidente do Chile dizer que o Brasil sofre uma "redução do espaço democrático", Bolsonaro atacou o pai de Bachelet, morto pela ditadura militar de Augusto Pinochet, e defendeu o golpe no Chile.

"BRASIL ACIMA DE TUDO; DEUS ACIMA DE TODOS!"

A expressão foi usada como slogan de campanha na eleição de 2018 e é invocada com frequência por Bolsonaro e seus apoiadores, principalmente em momentos de crise política do governo.

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