Desembargador que concedeu foro a Flávio Bolsonaro diz que agiu guiado por sua consciência

Paulo Rangel, alvo de reclamação disciplinar no CNJ, afirma que entendimento do STF não se aplica ao caso do filho do presidente

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Rio de Janeiro

O desembargador do TJ-RJ Paulo Rangel, que votou a favor da concessão de foro privilegiado ao senador Flávio Bolsonaro e da anulação de decisões da primeira instância envolvendo o político, diz que agiu guiado por sua consciência e pela Constituição.

Ele afirma que o entendimento firmado no STF (Supremo Tribunal Federal) sobre o tema não se aplica ao caso. Segundo a jurisprudência do Supremo, o foro privilegiado se encerra ao final do mandato. Flávio deixou de ser deputado estadual em janeiro de 2019, quando assumiu o cargo de senador.

Na quinta-feira (25), Flávio obteve junto à 3ª Câmara Criminal o direito de ser julgado pelo Órgão Especial do Tribunal de Justiça, reservado para autoridades como deputados estaduais, juízes estaduais e membros do Ministério Público.

O filho do presidente Jair Bolsonaro é investigado por suspeita de recolher parte do salário de seus empregados na Assembleia Legislativa do Rio de 2007 a 2018. Os crimes em apuração são peculato, lavagem de dinheiro, ocultação de patrimônio e organização criminosa.

A defesa do senador ingressou com um habeas corpus pedindo a concessão do foro especial, sob o argumento de que Flávio era deputado estadual à época dos fatos investigados.

Além de Paulo Rangel, a desembargadora Monica Tolledo também votou a favor do pedido do senador. A magistrada Suimei Cavalieri foi voto vencido.

Em nota, Rangel diz que o entendimento do STF é de que, quando um político em exercício perde o mandato, o processo deve retornar à primeira instância. ​

"Paulo Rangel sustenta que Flávio Bolsonaro não só não perdeu o mandato na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro como ganhou um novo mandato, desta vez no Senado", afirma o texto.

O entendimento do STF se aplica a qualquer político que deixe o cargo, mesmo em função do término do mandato.

Em maio de 2018, o Supremo restringiu o foro especial apenas para os crimes cometidos durante o mandato e em função dele. Em 1999, a corte já havia cancelado a súmula 394, que garantia o foro privilegiado mesmo após o fim do mandato.

Desde que votou pela restrição do privilégio, o Supremo tem enviado para a primeira instância inquéritos sobre políticos que não ocupam mais seus cargos anteriores.

É o caso do ex-presidente Michel Temer (MDB), que respondia a quatro inquéritos no STF. Em 2019, após deixar a Presidência da República, todos foram encaminhados para a primeira instância.

“Constata-se a superveniente causa de cessação da competência jurisdicional do Supremo Tribunal Federal, nos termos de pacífica jurisprudência”, escreveu o ministro Edson Fachin ao deliberar sobre os processos.

Apesar de ter votado a favor de Flávio Bolsonaro, Rangel já defendeu por escrito que o direito ao foro privilegiado deveria acabar com o fim do mandato. O desembargador adotou esse posicionamento no livro “Direito Processual Penal”, como mostrou o jornal O Globo.

“Se o agente não mais ocupa o cargo para o qual foi estabelecida a competência por prerrogativa de função, não faz (e não fazia) sentido que permaneça (ou permanecesse) com o foro privilegiado”, escreveu.

Nesta sexta-feira (26), o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) informou que o corregedor nacional de Justiça, ministro Humberto Martins, determinou a instauração de reclamação disciplinar contra Rangel.

A corregedoria apura um negócio firmado entre o desembargador e o empresário Leandro Braga de Sousa, preso em maio em uma operação que mirou desvios em contratos estaduais no âmbito da saúde. O magistrado teve que prestar esclarecimentos ao CNJ.

A revista Crusoé revelou que Rangel havia comprado a participação de Leandro Sousa em uma empresa de seguros.

Segundo documentos obtidos pela Folha, Rangel informou ao órgão que, "por boa fé", resolveu vender sua participação na empresa, mas que sua empreitada não violava a Lei Orgânica da Magistratura ou o Código de Ética, porque era sócio minoritário e não tinha poder de gerência na firma.

Em sua decisão, Humberto Martins afirmou que, após a apresentação de informações pelo desembargador, ainda devem ser aprofundadas as apurações quanto à suposta existência de infração disciplinar.

“Diante da complexidade da matéria, que envolve a mudança de controle societário e, simultaneamente, a admissão do magistrado representado no quadro de sócios, tenho que as investigações devem ser aprofundadas, para que não haja dúvida sobre a integridade ética da sua conduta perante à sociedade”, disse o corregedor nacional.

Paulo Rangel assumiu o cargo de desembargador no Tribunal de Justiça do Rio em 2010, pelo 5º Constitucional (regra segundo a qual um quinto das vagas de juízes é destinado a integrantes do Ministério Público ou a advogados).

Antes de ingressar na magistratura, Rangel atuou como promotor do MP-RJ e detetive na Polícia Civil.

Em dezembro de 2017, o desembargador chamou a atenção nas redes sociais ao aparecer em uma foto ao lado do juiz Marcelo Bretas, responsável pelos processos da Lava Jato no Rio, durante um treinamento de tiro.

Na fotografia, ambos estão empunhando fuzis. Bretas vem demonstrando simpatia pelo presidente Jair Bolsonaro e foi questionado por participar de agendas públicas com ele.

Nos últimos meses, Rangel tem compartilhado nas redes sociais críticas a ações e decretos de prefeitos e governadores que visam garantir o distanciamento social e reduzir a disseminação do novo coronavírus.

O posicionamento do desembargador vai ao encontro do posicionamento de Jair Bolsonaro e de parte de seus eleitores sobre o tema.

“Os governadores e prefeitos que estão dizendo ‘eu vou mandar prender [pessoas que desrespeitarem as normas de distanciamento]’ são homens loucos. Eu nunca imaginei assistir a isso numa democracia”, afirmou Rangel em live no dia 13 de abril.

Desde 2017, o desembargador tem postado nas redes opiniões de tom mais conservador, criticando a comoção pela “morte de bandidos” e a atuação de grupos de defesa dos direitos humanos.

Em fevereiro de 2018, compartilhou dois links: "Juízes e promotores assinam manifesto em apoio às Forças Armadas na intervenção do Rio" e "Militar morto hoje com a esposa grávida não gerou 1% da comoção de quando morre um bandido".

No passado, no entanto, Rangel endossava outros posicionamentos. Em setembro, postou uma reportagem que afirmava que a força policial brasileira é a que mais mata no mundo. "Eu falo, mas... dizem que eu sou garantista como se isso fosse um defeito de fábrica", escreveu.

Há cinco anos, o desembargador lançou um livro condenando uma eventual redução da maioridade penal.

“A discussão acerca da redução da idade penal é uma discussão retrógrada. Se aprovarmos essa emenda vamos estabelecer um retrocesso social, porque você não constrói um país com presídios, mas com escolas”, afirmou durante o lançamento do livro.

Erramos: o texto foi alterado

Versão inicial desta reportagem foi publicada com foto do juiz Abel Gomes, identificado incorretamente como sendo o desembargador Paulo Rangel. A imagem já foi removida. 

 

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