Doria arranha imagem técnica com mudança abrupta entre 'lockdown' e abertura

Governo de SP afirma que decisão seguiu ciência, mas aliados tucanos veem possível dano político

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São Paulo

Foi em 20 de maio que o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), afirmou que já tinha um protocolo de "lockdown" pronto. “Se nós não tivermos solidariedade, os índices crescerem ainda mais, e colocarmos em risco a vida das pessoas, seremos obrigados a adotar o 'lockdown'”, disse.

No dia 25, após o feriadão que era a última alternativa antes do "lockdown", Doria surpreendeu falando em abertura. O governo anunciou a “nova fase do Plano São Paulo, que prevê a retomada das atividades econômicas a partir de critérios técnicos”.

A mudança radical de discurso de uma semana para outra reforçou a tese de que o governador cedeu a pressões e colocou a ciência de lado ao tomar a decisão.

João Doria (PSDB), governador de São Paulo, em triagem e liberação de respiradores - Divulgação/Governo do Estado de São Paulo

Até então Doria, que busca ser candidato à Presidência da República em 2022, vinha sendo o grande antagonista de Jair Bolsonaro (sem partido), ao defender o isolamento recomendado por cientistas enquanto o presidente minimiza o vírus e prega abertura.

Na opinião de alguns aliados do governador ouvidos pela Folha, Doria erra ao anunciar abertura neste momento. Mas os tucanos não arriscam dizer se o aparente abandono da ciência vai custar a popularidade conquistada por Doria ao fazer oposição a Bolsonaro –membros do governo paulista apostam que não.

Tudo depende, segundo os políticos, do resultado do relaxamento da quarentena em São Paulo. Se a crise sanitária for agravada, o capital político obtido por Doria ao longo da pandemia pode ir por água abaixo.

Especialistas criticam a abertura anunciada em São Paulo enquanto os números de contaminados e de mortos ainda crescem. O relaxamento da quarentena em outros países ocorreu somente quando a curva começou a decair e não antes de atingir seu pico.

Em uma postagem em rede social na noite desta segunda-feira (8), o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, correligionário de Doria, afirmou: "Vamos mal: gente na rua, especialmente nos bairros pobres, o que se entende. Como não sou médico nem falo sobre flexibilizar. Temo precipitações e recidivas. Sei que a economia conta: sem emprego, como viver? Na dúvida, passo a passo. Recuar se necessário, sem arrogâncias inúteis".

Tucanos dizem que Doria cedeu a pressão do setor de shoppings e se orientou em pesquisas de opinião pública ao anunciar o Plano São Paulo, que divide as regiões do estado em fases de retomada das atividades econômicas.

Para esses aliados, o governador não deveria ter falado em abertura na semana seguinte à ameaça de "lockdown" –o ideal seria ter dado mais tempo, anunciando o relaxamento apenas em junho.

Ainda na opinião de alguns políticos, a população ficou sem entender a postura de Doria e o governador não deve menosprezar esse registro na memória do paulista.

O governo vê a flexibilização da quarentena chancelada por médicos após a demonstração de que a doença desacelera no estado. Membros da gestão argumentam que o isolamento não foi orientado ideologicamente para enfrentar Bolsonaro e tampouco a abertura segue politicagem.

A gestão Doria afirma que não houve perda de apoio popular e que a retomada demonstra equilíbrio. A equipe de Saúde bate na tecla de que não se trata de uma liberação geral, mas de abertura com regras de higiene e sem aglomeração.

A flexibilização colocou Doria e o prefeito Bruno Covas (PSDB), que concorre à reeleição neste ano, em rota de colisão, com divergências sobre o momento e a forma de retomada. Um dos desentendimentos, como mostrou o Painel, se deu porque a prefeitura planejava a reabertura de restaurantes antes dos shoppings, o contrário do que foi feito pelo estado.

Secretários dos tucanos, porém, minimizam e afirmam que prefeito e governador atuam unidos. A orientação do PSDB foi de contornar a divergência e não torná-la pública, seguindo a avaliação de que Covas não pode opôr-se a Doria pois precisa dele em sua campanha.

Governantes que enfrentam o mesmo dilema entre manter o isolamento ou intensificá-lo ou reduzi-lo ponderam que qualquer decisão vai desagradar boa parcela do eleitorado. No caso de Doria, porém, a avaliação é que o governador criou factoides e balões de ensaio para aparecer na mídia –falou em medidas mas não as executou.

A ideia do "lockdown" foi abandonada, mas, por outro lado, a abertura também não se completou. Na capital, Covas ainda dialoga com comerciantes planos para o funcionamento parcial das atividades.

Ao mesmo tempo, governantes apontam que é difícil manter a quarentena por muito tempo e que o isolamento no Brasil, por ser feito contra a vontade do presidente Bolsonaro, é menos eficiente –retardando o alívio da retomada visto em outros países e elevando a pressão econômica.

Já membros do governo afirmam que a pressão do setor produtivo é intensa e constante desde o início da pandemia e, portanto, não foi determinante para a reabertura. O governo aponta a retomada como uma decisão técnica, baseada na queda do ritmo de contágio e no desafogamento da rede de saúde.

Em entrevista à imprensa nesta segunda-feira, Doria anunciou que o total de respiradores entregues até agora chegou a 1.627 e outros 1.000 serão entregues até o fim do mês, o que permitiu abertura de leitos de UTI e diminuiu a taxa de ocupação hospitalar, que já batia mais de 90%, para 67,5%. Na região metropolitana, a taxa é de 75,5%.

A capacidade de testagem também se ampliou no estado, de 1.000 testes ao dia para 30 mil, o que deve fazer crescer o número de casos.

Baseado nessas informações, o governador voltou a defender a abertura como uma medida técnica nesta segunda. Em entrevista à imprensa, ele definiu o Plano São Paulo como “cuidadoso, faseado, seguro e sob orientação da saúde”.

“Não tomamos aqui iniciativas de ordem política ou por decisão pessoal, personalizando, seja no populismo, seja na vantagem, seja no benefício ou seja na pressão que é oferecida por setores que querem abrir e não poderão fazê-lo exceto dentro do que estabelece o Plano São Paulo”, disse.

Desde que a flexibilização foi anunciada, Doria e sua equipe de saúde têm respondido com frequência a perguntas de desconfiança sobre a quarentena mais frouxa.

O prefeito Bruno Covas(PSDB), o governador João Doria (PSDB) e seus auxiliares na área da Saúde e Segurança - Divulgação/Governo do Estado de São Paulo

Dentro do esforço de contrapor-se a Bolsonaro, o governador paulista cercou-se de nomes de peso da medicina em entrevistas e montou um comitê de combate ao coronavírus.

Esses médicos e o secretário de Saúde, José Henrique Germann, que antes defendiam o isolamento, agora afirmam que a retomada é segura –sobretudo devido ao aumento de respiradores e às restrições que ainda serão impostas nos comércios reabertos.

O aparato técnico de Doria busca minimizar a tese de que o governador desviou-se da ciência, mas mesmo dentro da equipe há divergências. Em entrevista à Folha na semana passada, Marcos Boulos, professor de medicina da USP e integrante do comitê de contingenciamento do coronavírus no estado, afirmou que se só a questão sanitária fosse levada em conta, a reabertura gradual deveria esperar mais algumas semanas.

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