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Entenda entraves para a formulação de lei contra as fake news no Congresso

Projeto já teve várias versões e entidades criticam pressa com que assunto está sendo debatido

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São Paulo

Em meio à pandemia do coronavírus e à disseminação de informações falsas sobre a doença, a discussão quanto ao combate à desinformação voltou a ganhar força no Congresso. Mas especialistas ouvidos pela Folha apontam diferentes problemas nas versões dos projetos de lei apresentados até o momento.

Há quem aponte a ineficácia de aprovação de uma lei para resolver as lacunas e também o risco de ela prejudicar garantias legais como o direito à liberdade de expressão.

Nesta segunda-feira (8), um dos projetos de lei, de autoria do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), teve a votação adiada pela segunda vez. Na última terça-feira (2), a votação foi adiada diante de inúmeras críticas, que partiram tanto de aliados do presidente Bolsonaro quanto de entidades ligadas a direitos digitais e das próprias plataformas.

O projeto já vinha sendo alvo de críticas e sofreu diversas alterações. No entanto, as divergências se intensificaram na madrugada anterior à votação com a circulação da minuta do senador Angelo Coronel, relator do projeto no Senado.

Também na Câmara havia sido apresentado projeto de mesmo teor pelos deputados Tabata Amaral (PDT-SP) e Felipe Rigoni (PSB-ES). O projeto inicial já foi substituído por novos textos por duas vezes. A última versão foi protocolada em 2 de junho, mesma data em que ocorreria a votação no Senado.

Entenda, a seguir, os principais pontos em discussão.

Celulares usados em empresa para enviar mensagens de WhatsApp em massa - Reprodução

Falta de debate

Além do conteúdo do projeto em si, também foram criticadas a pressa com que a tramitação está sendo realizada e a falta de transparência e da participação da sociedade civil.

A pesquisadora do ITS-Rio Priscilla Silva considera que há uma certa abertura dos congressistas para ouvir as sugestões da sociedade civil, mas que falta tempo para discutir.

"Está tão atropelado o debate que esses projetos estão gerando um recorte e frankstein de tudo que estamos falando, com outras problemáticas que se mantém. Essa pressa e falta de calma têm sido muito prejudicial."

O advogado Diogo Rais, professor da Universidade Mackenzie e cofundador do Instituto de Liberdade Digital, considera oportunista a utilização da justificativa do coronavírus para aprovação de uma lei do gênero.

"Utiliza-se a excepcionalidade da Covid para superar o debate e tentar aprovar sem debate público uma questão tão importante para a democracia", afirmou.

​Definição de desinformação

A própria definição do que é desinformação é um dos problemas que envolvem o debate, principalmente a depender das possíveis sanções e penalidades que a lei vier a definir com base nela.

A advogada Juliana Abrusio, especialista em direito digital e proteção de dados, afirma que, ao tentar definir o que seria desinformação ou contas inautênticas, é preciso "tomar muito cuidado para que o usuário comum e de boa-fé não seja injustamente atingido".

Em algumas das versões que circularam, o projeto poderia acabar por penalizar pessoas que divulgaram, sem saber, um conteúdo com informações falsas. Uma definição ampla demais também abriria margem para que sátiras, conteúdos incompletos ou sem contexto acabassem sendo considerados como desinformativos pela lei.

"Quando você define desinformação e cria critérios para obrigar a remoção ou tratamento de desinformação, você entra numa questão de mérito e você passa à plataforma o poder em certa medida de dizer o que é ou não desinformação", afirmou Victor Doering, pesquisador do Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação da FGV Direito SP.

Doering faz ainda uma distinção entre desinformação e má informação, segundo ele, "a má informação pode ser um usuário que compartilha a informação por estar desinformado, o jornalista que dá um furo que acaba não se concretizando ou que comete um erro".

Liberdade de expressão

A lei brasileira determina que plataformas não podem ser responsabilizadas legalmente pelo conteúdo de seus usuários, a não ser nos casos em que tenha havido uma ordem judicial determinando a remoção do conteúdo e elas não tenham obedecido. Isso foi definido no Marco Civil da Internet, aprovado em 2014.

A divulgação não autorizada de imagens íntimas é a única exceção à regra. Nesse casos, a retirada deve ocorrer após notificação da vítima ou de seu representante legal.

Segundo o advogado Thiago Oliva, especialista em liberdade de expressão do InternetLab, este foi o modelo encontrado para proteger a liberdade de expressão do usuário, pois caso a regra determinasse que as plataformas podem ser responsabilizadas pelo conteúdo de seus usuários, elas teriam uma pressão econômica muito grande para remover o conteúdo.

"Elas [as plataformas] poderiam sofrer uma série de ações judiciais demandando indenização e, na dúvida, as plataformas iriam remover antes de ver se aquele conteúdo é ilícito ou não, porque elas teriam receio de ter que pagar a indenização", disse.

Na opinião de parte dos especialistas, versões dos projetos de lei sobre fake news estariam invertendo essa lógica, fazendo com que plataformas possam ser responsabilizadas pelo conteúdo e com isso passem a retirá-los, por receio de sanções.

As sanções previstas em versões do projeto incluem multas e até suspensão das atividades no país.

Já a advogada Juliana Abrusio não vê uma mudança nesse sentido como problemática, pois ela considera que a regra de não responsabilização das plataformas acaba por aumentar a judicialização do tema e prejudica as vítimas da desinformação.

"Qual a consequência disso? Você onerou a vítima, uma vítima que não tem dinheiro para contratar um bom advogado para pedir uma liminar, essa vítima ficou com o conteúdo lá proliferando", disse.

Na opinião dela, "Não pode deixar para cada empresa criar e estruturar um regime de como vai lidar com a desinformação."

​​Privacidade

Também a identificação dos usuários nas redes, por meio do fornecimento de número de documentos entrou no debate. Em versões do projeto, há a determinação de que, para se cadastrar nas plataformas o usuário deveria fornecer seu número de CPF.

No relatório prévio do senador Angelo Coronel houve inclusive previsão de envio de cópia de documento de identificação com foto, cópia do CPF ou CNPJ e de comprovante de endereço para cadastro nas plataformas.

Juliana Abrusio entende que a intenção é dar mais autenticidade aos dados da rede, no entanto, ela considera algo nesse sentido abusivo e desproporcional. "É um dado extremamente sensível, porque é por meio dele que várias fraudes são feitas, então, porque a gente vai obrigar as pessoas, todos os usuários a informar o CPF e criar esse banco?"

Abrusio explica que o artigo 22 do Marco Civil já determina que tanto em procedimento civil ou penal os dados do IP podem ser requisitados, mas que deve haver autorização judicial. E a partir dos dados do IP é possível determinar quem é a pessoa.

Uma mudança nesse sentido representaria uma lógica de vigilância para Thiago Oliva, em que todos são suspeitos. Segundo ele, as pessoas já não são anônimas nas redes, pois suas ações são intermediadas por provedores de conexão à internet e das próprias plataformas.

"Você pode não saber naquele primeiro momento quem é a pessoa que postou aquilo, mas se ela cometeu um ilícito, você vai conseguir uma ordem judicial para descobrir quem é aquela pessoa."

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