Legislativo do Rio emprega servidores envolvidos com milícias e réus por homicídio

Supostos participantes de assassinatos, chacinas e até citado no caso Marielle circulam na Assembleia e na Câmara Municipal

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Rio de Janeiro

A contratação desenfreada de servidores comissionados nas casas legislativas gera distorções que vão além da conhecida “rachadinha”, prática que consiste na devolução de parte ou totalidade do salário ao parlamentar, e do uso de funcionários fantasmas.

No início do ano, ao longo de três meses, a Folha levantou a ficha criminal de funcionários da Câmara Municipal e da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro.

Encontrou mais de 35 servidores investigados, denunciados ou condenados por crimes como homicídio, participação em milícia, porte ou posse ilegal de arma, corrupção e improbidade administrativa.

O vereador Major Elitusalem (PSC) na Câmara Municipal do Rio de Janeiro
O vereador Major Elitusalem (PSC) na Câmara Municipal do Rio de Janeiro - Divulgação/Facebook

Um exemplo é o do vereador Major Elitusalem (PSC), afilhado político do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos). Ele é líder da bancada do PSC, da qual Carlos Bolsonaro fez parte até mudar para o Republicanos, em março.

Elitusalem empregou de julho de 2019 até janeiro deste ano Fabio Grama Miranda, condenado em segunda instância a cinco anos em regime fechado por integrar uma milícia. Miranda, que se identifica nas redes sociais como pastor e músico, ganhava R$ 7.483.

A exoneração de Miranda foi publicada no Diário Oficial no fim de janeiro, depois que a reportagem entrou com um pedido via Lei de Acesso à Informação para descobrir o gabinete no qual o servidor trabalhava.

Miranda chegou a ser preso preventivamente, mas em dezembro de 2013 obteve um habeas corpus e teve a pena substituída pelo cumprimento de medidas cautelares. A sentença que o condenou ainda não transitou em julgado.

Segundo a denúncia do Ministério Público, a milícia atuava em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, e estava infiltrada nas Polícias Militar e Civil, no Exército, na Marinha e no Legislativo da cidade.

De acordo com a acusação, a milícia extorquia moradores em troca de serviços como segurança, fornecimento de gás e distribuição de internet e TV a cabo clandestina.

Outro funcionário que teve envolvimento com uma milícia é Arlindo Maginário Filho, nomeado na Secretaria Geral da Mesa Diretora em 2009 e exonerado no último dia do ano passado. O ex-policial militar, que completou dez anos naquela função, ganhava cerca de R$ 11 mil.

Em meio às investigações da morte da vereadora Marielle Franco (PSOL), em março de 2018, chegou à Polícia Civil a denúncia anônima de que Arlindo teria recebido R$ 15 mil para recolher e repassar dados sobre a rotina da vítima.

Em depoimento, o ex-PM disse que entrou na Câmara Municipal pelo gabinete do ex-vereador Nadinho de Rio das Pedras, morto em 2009. Nadinho era apontado como um dos líderes da milícia de Rio das Pedras, zona oeste do Rio de Janeiro, e chegou a ser preso em 2007 pelo assassinato de outro miliciano.

O relatório final da CPI das Milícias na Assembleia fluminense indica que Arlindo fazia a segurança de Nadinho. O texto conta que, em certa ocasião, o ex-PM abordou em Rio das Pedras um cabo eleitoral de outro vereador e o proibiu de fazer campanha no local, afirmando que a comunidade pertencia a Nadinho.

Arlindo também chegou a ser preso e condenado porque teria participado da chacina em Vigário Geral, favela da zona norte do Rio. Em 1993, um grupo de extermínio composto por cerca de 50 encapuzados entrou na comunidade e matou 21 pessoas. Segundo o Ministério Público, a chacina aconteceu como vingança pela morte de quatro policiais militares.

O ex-PM foi condenado em 1997 a 441 anos de prisão, mas teve a pena reduzida a 58 anos pelo STJ (Superior Tribunal de Justiça). Arlindo conseguiu o direito de passar por um segundo júri popular, que o absolveu.

Ele também é réu em outro caso de homicídio e será julgado novamente pelo Tribunal do Júri. Arlindo é suspeito de ter participado do assassinato da diarista Edmea da Silva Euzébio, que liderava o grupo conhecido como “Mães de Acari”. Em 1990, 11 pessoas, muitas moradoras da favela de Acari, zona norte do Rio, foram sequestradas na Baixada Fluminense e desapareceram.

As investigações apontaram para a participação de policiais civis e militares que teriam tentado extorquir algumas das vítimas com passagem pela polícia.

O deputado estadual Coronel Salema (PSL) na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro
O deputado estadual Coronel Salema (PSL) na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro - Divulgação/Alerj

Na Assembleia do Rio, um dos funcionários que responderam a crimes graves foi o policial militar aposentado Gilcinei da Cunha Abreu, empregado no gabinete do deputado estadual e coronel da reserva da PM Coronel Salema (PSL), parlamentar fiel ao presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

Em novembro do ano passado, Salema foi inocentado pelo Tribunal do Júri da acusação de que teria participado do assassinato de um homem envolvido com o tráfico. Segundo a acusação, os suspeitos teriam levado a cabo um “justiçamento”, atividade típica de grupos de extermínio.

A morte ocorreu em 1995, e a denúncia foi oferecida pelo Ministério Público somente em 2009. Em 2004, a juíza Patricia Acioli, posteriormente assassinada por policiais militares após condenar diversos integrantes de milícias, negou o pedido da Promotoria para arquivar o caso.

Ela ressaltou que nenhuma diligência requerida pelo juízo havia sido realizada e que a autoridade policial sequer havia ouvido os parentes da vítima.

Gilcinei também chegou a ser preso temporariamente em 2012, suspeito de ter matado um homem e tentado matar outro, que sobreviveu.

Logo após a ocorrência, a vítima apontou o policial militar como o autor dos disparos de arma de fogo. Uma testemunha corroborou a afirmação. Posteriormente, ao prestar depoimento ao Ministério Público na companhia do advogado de Gilcinei, a vítima voltou atrás na acusação.

Gilcinei, que também é dono de uma empresa de segurança, recebe cerca de R$ 5.000 no gabinete do Salema, mais verba indenizatória de R$ 2.476 de auxílio-educação para os filhos.

Eleito na onda bolsonarista em 2018, após fazer campanha ao lado do candidato ao Senado Flávio Bolsonaro, Salema foi investigado pelo Ministério Público porque teria mantido relação com uma milícia de São Gonçalo, na região metropolitana, onde o deputado foi comandante de batalhão. Ele negou envolvimento.

A contratação desordenada de comissionados na Assembleia levou o Ministério Público do Rio de Janeiro a ajuizar ação para obrigar a regularização do quadro de funcionários, composto por 86% de comissionados e 16% de efetivos, descumprindo decisão do Supremo Tribunal Federal.

O problema foi alçado ao centro da discussão pública ao final de 2018, quando relatório do Coaf, órgão federal de inteligência financeira, indicou movimentações financeiras atípicas de funcionários de mais de 20 deputados estaduais no Rio. Entre eles, estava Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio Bolsonaro.

Outro lado

O vereador Major Elitusalem disse à Folha que não sabia das condenações de Fabio Grama Miranda quando o contratou e que o exonerou assim que ficou ciente do caso. Ele afirmou que conheceu o ex-funcionário como pastor, e que Miranda realizava "trabalhos sociais na área de esportes, lazer, para crianças, e trabalho evangelista".

"Nem sabia que ele tinha sido policial. Ele veio trabalhar para a gente nessa proposta, ajudar a desenvolver projetos e buscar captação de recursos a fim de expandir nossa base", disse o vereador.

Segundo Elitusalem, foi o próprio Miranda quem o contou, recentemente, sobre as condenações. Ele afirmou que a informação o chocou, porque o ex-servidor não apresentava sinais de agressividade, não portava armas e trabalhava num setor religioso.

"A gente não tem a prática de investigar, buscar a vida pregressa das pessoas que vem trabalhar com a gente, não é comum."

O vereador também afirmou que não tem conhecimento suficiente sobre o processo para comentar o caso de Miranda, já que ele corre em segredo de justiça. Disse, no entanto, que não coaduna com práticas da milícia.

"Nos meus anos de carreira efetuei prisões de policiais envolvidos com roubo de carga, com quadrilha de jogo do bicho, milícia, cheguei a sofrer ameaças. Não coaduno com esse tipo de conduta, não passo a mão na cabeça e não posso relativizar", disse.

A reportagem também conversou com o deputado Coronel Salema, que afirmou que Gilcinei da Cunha Abreu é um policial correto, com uma carreira de 30 anos, e que as acusações são “do século passado”.

O parlamentar defendeu que a morte que ocorreu em 1995 não foi um homicídio, mas um auto de resistência.

“O Tribunal do Júri entendeu que foi uma ação legal, ponto final. Ele era soldado, motorista da guarnição e nem participou do evento. Conduziu a viatura, os policiais desembarcaram e houve confronto”, disse.

“Infelizmente [houve] uma denúncia infundada, e, na outra, um ato de serviço nosso, que para nós é corriqueiro. Se ele em 30 anos respondeu um único processo, por um ato legal... O outro a gente nem considera, porque isso aí foi um absurdo. A arma dele foi extraviada no inquérito, sabia? Foi acautelada na delegacia e extraviou”, disse.

Sobre as acusações de que teria negociado com milicianos um ato de campanha, o deputado afirmou que não existe milícia em São Gonçalo.

“Na véspera da eleição inventaram uma milícia em São Gonçalo que não existe. As pessoas que fizeram o negócio lá para mim foram o pessoal do comércio e uns conhecidos.”

Procurado pela reportagem, Arlindo Maginário Filho não foi localizado até a publicação deste texto.

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