Descrição de chapéu O que foi a Ditadura

Movimentos pró-democracia resgatam amarelo como símbolo

Tom foi associado à ditadura militar, simbolizou a campanha das Diretas Já, esteve presente no impeachment de Dilma e foi apropriado por bolsonaristas

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Comício pelas Diretas em frente à Prefeitura de Porto Alegre, em 1984; a bandeira do Brasil foi colorizada 

Comício pelas Diretas em frente à Prefeitura de Porto Alegre, em 1984; a bandeira do Brasil foi colorizada  Luiz Avila/Agência RBS Colorização Edson Sales

São Paulo

Na bandeira ele representa as riquezas, na ditadura militar serviu para estimular o ufanismo, nas Diretas Já uniformizou as ruas no clamor pelo voto direto e, no Brasil de hoje, é disputado por detratores e apoiadores de Jair Bolsonaro.

O amarelo já foi usado e reciclado como símbolo em diferentes contextos da política nacional, ora associado ao establishment, ora à contestação.

A cor (que, combinada com o verde, é sinônimo de Brasil em qualquer lugar do mundo) está no centro de uma guerra que opõe movimentos da sociedade civil que se manifestam em defesa da democracia e grupos fiéis a Bolsonaro.

Enquanto o segundo grupo sai às ruas de amarelo e exibe discurso de posse sobre a bandeira e o hino nacionais, setores críticos ao governo querem devolver a estes componentes a condição de bens comuns, que deveriam estar à margem de divergências.

“Quando os bolsonaristas se apropriam desses símbolos, conseguem reforçar uma narrativa falsa de que eles são os verdadeiros brasileiros”, diz o escritor Antonio Prata, um dos organizadores do Estamos Juntos, manifesto por democracia que soma mais de 283 mil assinaturas.

O movimento, lançado em maio, adotou o amarelo como cor oficial.

“Temos que fazer esse resgate. Assim como precisamos voltar a abraçar a bandeira e a cantar o nosso hino. Quem disse que o hino é exclusividade do bolsonarismo?”, segue Prata, que é colunista da Folha.

A proposta é endossada por membros de torcidas organizadas de times que, reunidos no movimento Somos Democracia, ganharam espaço nas últimas semanas com protestos autodenominados antifascistas.

Danilo Pássaro, líder do grupo, disse em vídeo de convocação para os atos que parte da sociedade criou repulsa ao verde e amarelo “em razão da sua apropriação por grupos intolerantes, racistas, fascistas”.

Para entender a recente onda amarelada entre forças de direita, é preciso voltar a 2014, quando eclodiram manifestações contra Dilma Rousseff (PT), depois transformadas em passeatas pró-impeachment.

O Vem pra Rua, uma das organizações que puxaram os atos, inicialmente usaria o laranja, mas teve que trocá-lo, segundo o fundador Rogério Chequer, porque em telas ele poderia se confundir com o vermelho. “No primeiro vídeo que postamos, nos xingaram de petistas”, diz, em alusão ao tom rubro do partido.

“Aí debatemos que a cor deveria ter a ver com a bandeira, com a pátria. Logo, amarelo”, explica. O fato de participantes começarem a aparecer vestindo a camiseta da seleção foi coincidência, afirma Chequer.

“Em 2014 teve Copa do Mundo. Acho que era mais fácil a pessoa ter em casa uma camisa da seleção do que outra roupa da mesma tonalidade”, diz. A moda pegou e depois passou a ser incentivada pelos próprios adeptos das marchas anti-PT e pró-Lava Jato.

Embalados pelo coro de “a nossa bandeira jamais será vermelha”, manifestantes e organizadores amarelaram de vez, no sentido cromático. O MBL (Movimento Brasil Livre), outro indutor dos atos contra Dilma, despejou a cor nos materiais de divulgação.

Também era tingido de amarelo o pato inflável instalado nessa época na avenida Paulista como avatar de campanha da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) contra o aumento de impostos.

O contexto ajudou a pavimentar a eleição de Bolsonaro em 2018, já que o presidenciável abraçou pautas caras àqueles insatisfeitos, como o antipetismo e o combate à corrupção.

Predominante ainda hoje nos atos pró-governo, o elemento acompanha Bolsonaro desde a campanha. Era amarela a camiseta usada por ele no instante em que sofreu a facada em Juiz de Fora (MG).

Mas o debate sobre apropriação e reinvenção da cor é bem mais antigo. Remonta à construção do pavilhão nacional, como explica a historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz.

“A cada releitura da bandeira, o centro era alterado, mas as cores se mantinham. Originalmente, o amarelo simbolizava a casa imperial de Habsburgo-Lorena. Com a Independência, para apagar as casas imperiais, a cor passou a significar as riquezas, o ouro. E esse sentido foi ratificado na República”, diz.

Segundo a professora da USP, os tons oficiais foram evocados em inúmeros outros momentos. Ela cita o Primeiro Reinado (1822-31), com dom Pedro 1° incentivando o uso das cores pela população, e o movimento integralista, nos anos 1930, que incorporou o verde e amarelo aos uniformes.

“Mas nada se compara, em termos de escala, ao que foi feito pela ditadura. Aí virou essa patriotada, com a ideia de que este é um país que vai para a frente, a coisa do ame-o ou deixe-o. É típico de governos ditatoriais apelar para esse discurso, sequestrar os símbolos pátrios”, afirma.

No caso do regime militar, o “sequestro” avançou também sobre o futebol, com o uso político que o governo de Emílio Garrastazu Médici (1969-1974) fez da campanha da seleção na Copa de 1970.

Pareceria óbvio, depois disso, que uma iniciativa contrária ao regime militar buscasse qualquer outra tonalidade. Mas a campanha das Diretas Já, em 1984, fez o oposto: bancou o amarelo e decidiu reinterpretá-lo.

“Resgatar essa cor foi uma das primeiras coisas que fizemos”, lembra a cantora Fafá de Belém, que participou do movimento e fez história ao entoar nos comícios o hino nacional.

“A ditadura tinha se apropriado dos nossos símbolos pátrios e nós fomos nos envergonhando deles, de uma forma consciente ou inconsciente”, continua Fafá, que se recorda de usar “um colar de um amarelo intenso” nos palanques. “Era lindo ver aquele povo todo na mesma vibração.”

A idéia de definir um único tom para a campanha é atribuída a Caio Graco Prado (1932-1992), dono da editora Brasiliense. Prado contou à Folha em 1984 ter se inspirado em manifestações nas Filipinas contra o então presidente Ferdinand Marcos, que eram marcadas pela chamativa cor.

Fazia parte da estratégia estimular as pessoas a usarem alguma peça amarela no dia a dia, como sinal de engajamento na pauta. Podia ser camiseta, broche, lenço no pescoço, fitinha no pulso.

A Folha também aderiu. Em editorial publicado em fevereiro de 1984, intitulado “Amarelo, sim”, o jornal exaltou a importância de simbolismos para que o movimento prosseguisse. De abril em diante, passou a trazer na Primeira Página uma tarja amarela, acompanhada da frase: “Use amarelo pelas diretas-já”.

A emenda que propunha o voto direto acabou rejeitada no Congresso, e a eleição presidencial só ocorreria em 1989, com a vitória de Fernando Collor de Mello.

Pelas mãos de Collor, o amarelo voltou à cena política em agosto de 1992.

Alvo de denúncias de corrupção, ele fez um pedido: que os brasileiros saíssem de casa com uma peça de roupa em alguma das cores da bandeira. No dia combinado, a maioria da população vestiu preto, em protesto.

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