'A Máquina do Ódio' revela engrenagem digital do tecnopopulismo

Novo livro de Patrícia Campos Mello amarra bastidores de reportagens com as campanhas de difamação de que jornalistas agora são alvo

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São Paulo

Uma onda obscurantista subverteu as liberdades da experiência digital global ao criar tecnologias de manipulação em massa capazes de influenciar o jogo político em direções extremistas.

A tática de marketing político, invisível e silenciosa, favoreceu a ascensão de líderes populistas da direita nacionalista, e pode configurar um ponto de inflexão na trajetória da chamada democracia liberal em países tão distintos quanto Índia, Reino Unido, EUA, Itália, Indonésia e Brasil.

A repórter especial da Folha Patrícia Campos Mello - Reinaldo Canato - 11.mai.2019/Folhapress

A instrumentalização de redes sociais e aplicativos de comunicação instantânea como armas de desinformação hipersegmentadas foi descoberta por jornalistas profissionais. Muitos deles se tornaram, então, alvos de campanhas virtuais de difamação deflagradas pelos mesmos mecanismos que denunciaram.

No Brasil, foi a premiada jornalista Patrícia Campos Mello, repórter especial da Folha, que jogou luz no uso dessa estratégia digital ilusionista durante a campanha presidencial de 2018, que elegeu Jair Bolsonaro.

Agora, ela explora o tema em profundidade e extensão, relacionando o caso brasileiro a episódios contemporâneos pelo mundo em seu novo livro, “A Máquina do Ódio” (Companhia das Letras).

Nele, a repórter destrincha o manual desse novo aparato digital clandestino, tão fascinante quanto assombroso, operado por empresas de tecnologia de dados a serviço dos novos tecnopopulistas.

Suas técnicas inundam redes sociais e grupos de apoiadores com conteúdos falsos, distorcidos ou estridentes e polêmicos, criados para manipular percepções, abafar informações indesejáveis ou detratar quem os questiona ou se coloca em seu caminho.

Os esquemas envolvem a obtenção ilegal de dados de usuários que, agrupados de acordo com seus perfis, passam a ser bombardeados por campanhas inflamatórias, cujos conteúdos apelam para medos e ressentimentos comuns ao grupo, construindo inimigos ao vilanizar grupos, religiões e ideologias políticas.

“Populistas privilegiam mensagens tóxicas, que geram polarização, isolando seu grupo de apoiadores da influência do contraditório e distraindo-o de notícias e debates desfavoráveis”, diz a autora, que neste mês ganhou o prêmio Maria Moors Cabot, da Faculdade de Jornalismo da Universidade Columbia, por sua carreira como repórter e pelo seu trabalho investigativo. A distinção é a mais importante dada a jornalistas estrangeiros nos EUA.

No livro, Patrícia amarra os bastidores de seu trabalho jornalístico na cobertura das eleições americanas de 2008, 2012 e 2016, dos pleitos indianos de 2014 e 2019 e da corrida presidencial brasileira de 2018, que utilizaram o big data em diferentes modelos, cada vez menos republicanos.

Ao acompanhar os passos de sua investigação, descobrimos um universo digital paralelo à promessa de amplo acesso à informação que a internet parecia entregar.

Patrícia nos mostra que táticas elaboradas para influenciar usuários sobre o que é verdade e sobre aquilo que realmente importa atravessaram sorrateiramente esse éden tecnológico, amparados pelo silêncio de gigantes como o Facebook.

Ao compreender melhor as dinâmicas de desinformação e manipulação, a jornalista torna evidente por que o ataque à mídia profissional e as campanhas por sua deslegitimação são parte essencial da máquina do ódio. As informações com lastro (que passaram pelos processos de checagem e rechecagem) e de confronto com seu contraditório são estraga-prazeres desse jogo.

Célebre por reportagens em territórios conflagrados da África e do Oriente Médio, onde a atividade jornalística implica riscos objetivos, sempre à espreita, Patrícia ironicamente acabou se tornando alvo de ataques no ambiente virtual e no seio de seu próprio país.

Ela é a autora da reportagem bomba, publicada às vésperas do segundo turno das eleições presidenciais de 2018, que revelava o financiamento de disparos em massa de mensagens de ataque ao PT e a seu candidato no pleito, Fernando Haddad, por empresários apoiadores da candidatura de Bolsonaro. A prática é ilegal.

Agências de checagem apontaram que alguns dos conteúdos falsos mais disseminados durante a campanha foram sobre fraudes em urnas eletrônicas e sobre a famigerada “mamadeira de piroca”, apontada como criação do governo petista para combate à homofobia nas escolas.

A revelação por Patrícia do esquema de disparos em massa nas eleições incitou o exército virtual bolsonarista a atacá-la. A gravidade e o volume das ameaças fizeram com que a jornalista passasse um período acompanhada por um segurança, expediente ao qual não havia recorrido nem em coberturas de guerra.

Um ano depois das primeiras reportagens, a repórter foi alvo de ofensas proferidas em plena CPMI das Fake News, no Congresso, quando Hans River do Nascimento, ex-funcionário da Yacows (agência de disparos de mensagens em massa por WhatsApp), mentiu em depoimento, insinuando que a repórter da Folha queria trocar informações por sexo.

O episódio foi mencionado pelo presidente e pelo deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), e gerou uma enxurrada de memes e deep fakes misóginos contra a profissional. Eles estão sendo processados pela jornalista na Justiça.

Patrícia dedica um capítulo à saga de jornalistas mulheres que, como ela, foram atacadas pelo presidente e seus apoiadores, como Miriam Leitão, Vera Magalhães, Constança Rezende e Marina Dias.

“A Máquina do Ódio” termina com uma reflexão sobre o jornalismo profissional, seus princípios e técnicas, e sobre como a pandemia da Covid-19 tem ressignificado o papel da mídia como parte do sistema de freios e contrapesos do poder e como guardiã da democracia contra autocratas interessados em esconder informações da opinião pública.

“Se a imprensa não resistir aos governos populistas, à manipulação das redes sociais e à recessão econômica, vão sobrar apenas blogs e sites partidários, que não relatam nem analisam fatos, apenas corroboram crenças. Isso não é informação”, conclui Patrícia.

Basta lembrar que, sem a investigação da própria autora, assim como aquelas de outros jornalistas profissionais que a sucederam, talvez ainda ignorássemos a existência desta máquina do ódio na política brasileira.

Capa do livro "A Máquina do Ódio", de Patrícia Campos Mello - Reprodução

A Máquina do Ódio
Autora: Patrícia Campos Mello
Editora: Companhia das Letras
196 páginas (R$ 39,90)

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