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Compartilhar dados da Lava Jato com a PGR pode ferir investigações

Decisão do ministro Dias Toffoli não especifica maneira como provas e informações serão utilizadas pelo órgão

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Caio Farah Rodriguez

É advogado, professor do Insper e doutor pela Faculdade de Direito da USP

Um intérprete da situação brasileira que apreciasse teorias da conspiração poderia supor ter sido finalmente celebrado o grande acordo de proteção mútua entre as cúpulas dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, com a participação da Procuradoria-Geral da República (PGR).

Mas não é preciso chegar a tanto para avaliar como institucionalmente perigosa a decisão tomada pelo presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), o ministro Dias Toffoli.

Segundo a decisão, que tem caráter liminar, todos os ramos da Operação Lava Jato (em Curitiba, Rio e SP) foram obrigados a compartilhar com a PGR os bancos de informações e provas que obtiveram ao longo das investigações.

O pedido acatado por Toffoli foi feito pela PGR, sob o fundamento de que a negativa das forças-tarefas em prover tais informações violaria a unidade do Ministério Público, além da suspeita de que poderiam estar sendo investigadas autoridades com privilégio de foro.

Na superfície, a decisão poderia parecer adequada, pois teria o efeito de corrigir uma descoordenação entre diferentes áreas do MPF (Ministério Público Federal). Entretanto há pelo menos dois problemas fundamentais com ela, de natureza institucional.

O primeiro é desconsiderar que o MPF não é um órgão hierárquico, como se os procuradores da República que o integram estivessem sujeitos às ordens do procurador-geral da República.

Ao contrário, do ponto de vista investigativo, o que vale no MPF é a independência funcional, pela qual cabe a cada procurador ou grupo de procuradores atribuição pela apuração e denúncia de certos fatos, de acordo com critérios objetivos e sob controle judicial específico.

Justamente em razão da sensibilidade da matéria criminal, da tutela de questões coletivas (ambientais e sanitárias, por exemplo) e dos poderes persecutórios de que está incumbido o Ministério Público, o arranjo descentralizado representa um mecanismo de freios e contrapesos interno à instituição.

Isto é, embora a descentralização às vezes se torne desorganização, o objetivo maior é evitar que uma só pessoa ou grupo restrito de pessoas possa centralizar investigações tão sensíveis quanto as que cabem ao MPF. Sobretudo aquelas de corrupção política, que se prestam a manipulações tentadoras.

Em outras palavras, seria institucionalmente inconcebível que todas as investigações da Lava Jato no país de repente ficassem, indiscriminadamente, sob controle da PGR.

Unidade institucional implica coordenação e normas gerais comuns, não subordinação, mesmo que a pretexto de coibir os excessos que se atribuam a certas ações da mesma operação, os quais devem ser apurados caso a caso.

O segundo problema reforça o primeiro. A decisão de Toffoli não especifica a maneira como as informações e provas poderão ser utilizadas pela PGR. Então, mesmo que se concordasse que um órgão centralizado do MPF pudesse ser o custodiante de todas as bases de dados de uma operação como a Lava Jato, essa custódia deveria estar sujeita a regras e procedimentos específicos de controle.

Por exemplo, seria no mínimo indispensável que qualquer consulta às bases de dados fosse pormenorizadamente registrado, com delimitação de escopo, indicação de quem e quando acessou, com qual justificativa, para a finalidade de qual investigação e com base em que autorização judicial.

A decisão ainda pode ser alterada pelo plenário do STF, como ocorreu no semelhante caso do Coaf.

Mesmo se mantida, os controles e cautelas mínimos descritos podem ser implementados como condições da confirmação e alcance de seus efeitos, inclusive com a participação de Toffoli.

E o Ministério Público pode também se valer de sua densa institucionalidade interna para estabelecer regulações e controles, por diálogo entre seus membros e nas instâncias colegiadas competentes.

Ainda que haja estrita confiança nas pessoas que conjunturalmente ocupam os cargos públicos que terão acesso às bases de dados objeto da decisão de compartilhamento, trata-se de uma questão institucional, o que implica cautelas com o futuro.

Não se deve minimizar o risco de um procedimento criado em face de uma circunstância específica ser objeto de abuso em circunstâncias diferentes, com outras pessoas ou motivações.

Além dos problemas apontados e de outras questões técnicas, a decisão de Toffoli não parece oportuna. Sobretudo nos termos genéricos em que foi dada.

No meio de uma pandemia sanitária, de uma crise socioeconômica sem precedentes, do recesso judiciário e do fim de seu mandato como presidente da corte, sua decisão monocrática pode inadvertidamente criar condições de trabalho a uma futura versão brasileira de J. Edgar Hoover, chefe do FBI famoso por utilizar amplamente as investigações desse poderoso órgão estadunidense contra os adversários políticos do momento.

Figuras como J. Edgar Hoover são conhecidas menos pelo cumprimento de acordos do que pelo seu uso instrumental e momentâneo. Os problemas e cuidados práticos sugeridos acima são de interesse dos cidadãos em geral. Mas não deveriam ser esquecidos, especialmente por aqueles que transacionam politicamente mais amiúde.

Erramos: o texto foi alterado

A biografia do autor deixou de informar que Caio Farah Rodriguez, como advogado, atuou na negociação do acordo de leniência da Odebrecht

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