Descrição de chapéu
O que foi a Ditadura

Foi fácil os militares saírem dos quartéis, difícil será voltar

Não poderia imaginar que estaria, apenas 36 anos depois, escrevendo sobre campanha em defesa da democracia

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Nada lembra o Brasil de 2020 daquele que foi às ruas em 1984 na campanha das Diretas Já, a maior mobilização popular da nossa história, que marcou o fim da ditadura militar.

São duas realidades completamente distintas, como se estivéssemos agora vivendo em outro país, muito pior do que aquele que percorri de ponta a ponta ao lado de Ulysses Guimarães, o grande comandante da caravana da esperança.

Não poderia imaginar que estaria agora, apenas 36 anos depois, escrevendo sobre uma campanha em defesa da democracia, novamente ameaçada.

Na noite de 26 de abril daquele ano, que foi o divisor de águas entre a ditadura e a democracia, faltaram apenas 22 votos para a aprovação da emenda Dante Oliveira, que restabelecia a volta das eleições diretas para a Presidência da República.

Eu estava lá no Congresso Nacional como repórter da Folha e vi como aquela grande festa da democracia, que inundara o país de alegria, fé e esperança, se transformou num monumental velório.

Dias depois, ainda me recuperando da ressaca das Diretas Já, me liga em casa o doutor Ulysses, como todos o chamavam, também ele inconformado com o que acontecera.

“Sabe o que eu descobri, Kotscho? Enquanto nós estávamos viajando pelo Brasil defendendo eleições diretas para presidente, o Tancredo já estava se acertando com os dissidentes do PDS e mesmo com companheiros meus do PMDB para montar sua campanha no Colégio Eleitoral. Gastei meu verbo à toa. Assim é a vida, meu filho.”

Um desses dissidentes, como se veria depois, era José Sarney, presidente do PDS, o partido do governo militar, que se tornaria vice na chapa de Tancredo.

Na véspera da posse, o primeiro presidente civil após o ciclo dos generais foi internado às pressas no Hospital de Base, em Brasília. Sarney assumiu em seu lugar, e o resto é história sabida.

Tancredo morreu, após longa agonia, e tempos depois Ulysses desapareceu no mar de Angra dos Reis (RJ) num acidente de helicóptero.

De tragédia em tragédia, dois impeachments depois, chegamos ao inacreditável Brasil do capitão Jair Bolsonaro, um juramentado defensor da ditadura militar, que para ele, curiosamente, nunca existiu.

Multiplicam-se pelo país, e até no exterior, manifestos e movimentos em defesa da democracia, que é apoiada por 75% da população, segundo o Datafolha divulgado no domingo (28).

É uma boa notícia no dia em que a Folha, o jornal das Diretas Já, lançou a campanha #UseAmarelo pela Democracia, mas o que me assusta é saber que muita gente ainda pense como Bolsonaro.

São eleitores que votaram nele para presidente em 2018, que defendem o fechamento do Congresso e do Supremo, a censura e a tortura, e acham que há muita chance de termos uma nova ditadura.

“Foi fácil entrar na ditadura, difícil foi sair”, constata Elio Gaspari, em artigo publicado no caderno especial da Folha sobre aquele período tenebroso do qual muitos ainda sentem saudades.

Parafraseando o colega, e vendo agora os 2.900 militares ocupando cargos civis nos principais escalões do governo, eu poderia concluir que “foi fácil os militares saírem dos quartéis, difícil será voltar”.

Se e quando tudo isso passar, voltamos ao ponto de partida.

Precisamos rediscutir o papel das Forças Armadas na nossa jovem democracia. Os fardados saíram de cena em 1985, mas estão de volta, como protagonistas de mais uma tragédia, com a ocupação militar do Ministério da Saúde, em meio à pandemia fora de controle que já matou quase 60 mil brasileiros.

“Assim é a vida, meu filho”, como me disse o doutor Ulysses. Sim, mas até quando?

Ricardo Kotscho, jornalista

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