Foro de SP, bicho-papão do bolsonarismo, faz 30 anos e busca nova relevância

Grupo de partidos de esquerda perdeu espaço com refluxo da onda vermelha na América Latina

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São Paulo

Há 30 anos, Luiz Inácio Lula da Silva abria a primeira reunião do que se tornaria o Foro de São Paulo com um pedido de desculpas às dezenas de delegados espremidos em um salão do antigo Hotel Danúbio, no centro de São Paulo.

“O encontro foi convocado de forma muito rápida, e portanto não foi possível fazer a organização que nós pretendíamos fazer”, disse a representantes de 53 partidos de esquerda, de 14 países, reunidos num prédio que hoje pertence à universidade FMU, na avenida Brigadeiro Luís Antônio.

Ele pediu pontualidade a todos, porque a pauta era extensa: o futuro do socialismo após a queda do bloco soviético e a resistência à onda neoliberal no continente.

Mas o próprio Lula ignorou sua cobrança e atrasou os trabalhos por causa dos jogos da Copa do Mundo da Itália, cujas semifinais passavam numa TV colocada numa sala ao lado. No último dia, 4 de julho, alguns delegados que tinham voo marcado acabaram perdendo parte do debate final.

Assim, num clima de improviso e informalidade, nasceu a entidade que é hoje demonizada pela direita ligada ao presidente Jair Bolsonaro e ao escritor Olavo de Carvalho.

“Estamos sufocando o crime organizado e retirando o sustento dos partidos e grupos terroristas que compõem o Foro de São Paulo”, disse Bolsonaro, por exemplo, em outubro de 2019.

Luiz Inácio Lula da Silva na abertura do evento que deu origem ao Foro de São Paulo, com os membros da direção petista (a partir da esq.) Marco Aurélio Garcia, João Machado, José Dirceu e Luiz Gushiken, em 2 de julho de 1990 - Reprodução Canal Contra Mola no YouTube

Usada como espantalho pelo presidente para reenergizar sua base de tempos em tempos, a entidade já viveu dias melhores.

Com o refluxo da onda vermelha na América Latina a partir de 2016, que tirou a esquerda de países como Brasil, Uruguai, Chile, Bolívia e Equador, o Foro busca novo espaço para resistir à ascensão da direita no continente.

Além disso, o surgimento de outras iniciativas globais, como o Grupo de Puebla, que reúne ex-presidentes esquerdistas do continente, e a Internacional Progressista, criou uma certa sombra à organização.

“Eu acho até graça quando fico sabendo das lives do Olavo que falam do Foro”, diz a secretária-executiva da entidade, a petista Monica Valente. “Viramos o novo eixo do mal.”

Hoje são 122 partidos membros, de 26 países da América Latina e do Caribe. O PT tem grande influência sobre a entidade e sempre indicou o secretário-executivo, espécie de coordenador do Foro.

Do Brasil participam também PC do B, PDT e PCB. O PSB e o PPS deixaram a organização nos últimos meses, insatisfeitos com a influência do regime venezuelano.

O encontro inaugural foi pensado como um evento único. Não havia o nome “Foro”, nem a ideia de criar uma entidade permanente, que só viriam depois. Desde então já houve 25 reuniões, a última delas em julho de 2019 em Caracas.

Um novo encontro estava marcado para este ano no México, mas foi adiado por causa da Covid-19. Enquanto isso, a organização se mantém ativa por meio de reuniões online. Uma das últimas, em maio, debateu a “unidade e solidariedade anti-imperialista ante a pandemia”.

A imagem do grupo como um bicho-papão, segundo Valente, é uma caricatura da extrema direita.

“Tem um elemento propagandístico, de fake news, em que você vai contando uma mentira e ela vira verdade. É igual ao kit gay do [Fernando] Haddad”, afirma ela, rem referência a uma acusação falsa de que o PT incentivaria práticas homossexuais nas escolas.

O Foro, diz a dirigente, é um espaço de debate de ideias, não de imposição de diretrizes. “Todo mundo tem liberdade de fazer o que acha, as decisões são tomadas por consenso.”

Algumas das características do grupo o expuseram a ataques ao longo de sua existência. O principal é o fato de dar abrigo a ditaduras, a começar pela cubana.

A própria ideia de reunir os partidos latino-americanos de esquerda surgiu de uma conversa de Lula e Fidel Castro. Hoje, além do Partido Comunista Cubano, fazem parte as legendas que sustentam os regimes ditatoriais da Nicarágua e da Venezuela.

Também houve flerte com entidades que adotavam a guerrilha, sobretudo as Farc colombianas, que nunca participaram formalmente do Foro, mas mandavam observadores para as primeiras reuniões.

Os laços só foram cortados a partir dos anos 2000, quando a esquerda que chegava ao poder pela via eleitoral queria se distanciar da via armada (hoje, as Farc integram o Foro como um partido político legalizado).

Para Valente, o que caracteriza os integrantes do Foro é serem “antineoliberais e anti-imperialistas”.

“Democracia é um corte importante, claro, agora, a democracia não se resume a eleições. Vejam as últimas no Brasil como foram. Reconhecemos o resultado, mas não significa que achemos que tenham sido limpas e corretas”, diz.

A presença da Venezuela, afirma, não causa embaraço. “Você pode falar o que for da Venezuela, mas não tem país que mais fez eleição.”

Secretário-executivo do Foro de São Paulo entre 2005 e 2013, Valter Pomar era um jovem militante petista de 23 anos frequentando os corredores do Hotel Danúbio na primeira edição.

Coautor de “Foro de São Paulo – Construindo a Integração Latinoamericana e Caribenha” (editora Fundação Perseu Abramo, 2013), ele identifica algumas fases na existência da organização.

“Em boa parte dos anos 1990, o Foro era irrelevante, a gente só governava Cuba”, diz. “Só depois alcançou êxito. Veja o que aconteceu a partir do final dos anos 90, com as vitórias de Chávez [em 1998] e Lula [em 2002]. Contribuiu muito para as vitórias que a esquerda teve no período seguinte.”

Um momento de inflexão, acredita Pomar, foi a crise financeira de 2008, que abalou o capitalismo mundial.

“A partir de 2008, a pauta era diagnosticar a crise mundial. Uma avaliação foi de que era a marcha fúnebre do neoliberalismo. Outro setor achava que os EUA dobrariam a aposta no modelo neoliberal. Nunca houve um desfecho para essa polêmica”, afirma.

Ele ironiza a tentativa dos olavistas de caracterizarem o Foro como “uma maçonaria”, mas diz que a direita tem alguma razão em se inquietar.

“Estão corretos em se preocupar, porque o Foro potencializou a esquerda latino-americana. Você pode dizer que está debilitado, pode também dizer que está se preparando para uma nova expansão. A esquerda vai voltar ao governo e o Foro vai ser muito necessário”, diz.

Para o cientista político Fernando Abrucio, professor da FGV (Fundação Getulio Vargas), “quanto mais o Foro de São Paulo foi perdendo relevância, mais ganhou importância para seus detratores”.

“Na década de 90, ele foi importante para os líderes de esquerda conhecerem pessoas, formarem redes políticas. Mas a partir do segundo governo Lula [2007-10], perdeu importância completa. Não era mais necessário. As articulações eram feitas pelos governos”, afirma.

Segundo Abrucio, vilanizar o Foro é um discurso que atende à direita, sobretudo a mais ideológica. “Esses grupos funcionam na lógica de construir um inimigo interno. Identificar o comunismo como ameaça é algo muito solto. O Foro deu materialidade a esse inimigo.”

O professor acredita que o grupo hoje paga um preço político por sempre ter tolerado a esquerda não-democrática. “Sempre fecharam os olhos para a repressão em Cuba, e para as próprias Farc durante um bom tempo”, diz.

Ele é cético quanto à capacidade de a entidade readquirir relevância para novamente ajudar a esquerda a voltar ao poder, como fez nos anos 90. “O momento da esquerda é de reorganização interna e renovação. Mas não acho que vai ser o Foro que fará isso.”

Foro de São Paulo

  • Fundação: 2 a 4 de julho de 1990 (ainda sem esse nome)
  • Local: Hotel Danúbio, no centro de SP
  • Membros na fundação: 53 partidos, de 14 países
  • Membros hoje: 122 partidos, de 26 países ou territórios
  • Principais organizações: PT (Brasil), Partido Comunista (Cuba), Frente Sandinista (Nicarágua), Frente Ampla (Uruguai), PSUV (Venezuela), Partido Socialista (Chile)

Linha do tempo

  • 1990: grupo nasce em reunião em SP promovida pelo PT
  • 1995: em sua quinta edição, no Uruguai, encontro tem as Farc como membro observador
  • 1997: filiação do Movimento Tupac Amaru, do Peru, que havia promovido sequestro na embaixada do Japão em Lima, é rejeitada
  • 1999: posse de Chávez na Venezuela dá início à onda vermelha no continente, fortalecendo o Foro
  • 2002: Olavo de Carvalho publica artigo na Folha em que diz que Foro é a “entidade política mais poderosa do continente”
  • 2005: Lula impede participação das Farc em evento de 15 anos do grupo, em São Paulo
  • 2010: em evento em Buenos Aires, Foro pede saída pacífica para conflito na Colômbia, mas não condena Farc
  • 2013: grupo faz evento especial para homenagear Hugo Chávez, morto em março daquele ano
  • 2014: em artigo na Folha, Jair Bolsonaro diz que Foro é “o que há de pior na América Latina”
  • 2016: impeachment de Dilma marca refluxo da onda vermelha
  • 2019: Foro faz encontro na Venezuela promovido por Nicolás Maduro
  • 2020: encontro no México é adiado por causa da pandemia da Covid-19
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