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Ações no STF revelam um 'vale-tudo' da AGU pelo chefe Bolsonaro

Hipertrofia de poder no comando de instituições tem se mostrado perigosa diante da promessa de vaga no Supremo

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Eloísa Machado de Almeida

Professora e coordenadora do Supremo em Pauta FGV Direito SP

As ações judiciais em tramitação no Supremo mostram não só os embates entre o tribunal e o presidente da República em relação às suas políticas e omissões inconstitucionais como também a atuação de instituições como a AGU (Advocacia-Geral da União) nesses casos.

O presidente Jair Bolsonaro e o advogado-geral da União, José Levi
O presidente Jair Bolsonaro e o advogado-geral da União, José Levi - Pedro Ladeira/Folhapress

Desde janeiro de 2019, início do mandato de Jair Bolsonaro, 156 ações de controle de constitucionalidade foram propostas no Supremo contra ações ou omissões do governo federal.

As ações contestam, por exemplo, os sucessivos decretos de flexibilização de posse de armas de fogo, afrontas à autonomia universitária, desmonte de políticas e órgãos ambientais, declarações de apoio à ditadura.

As mais recentes se dirigem à ineficiência do governo federal em enfrentar a pandemia da Covid-19 —de forma coordenada, articulada e baseada em evidências.

Foi justamente nas ações relacionadas à pandemia que o STF passou a exercer seu controle sobre os atos presidenciais.

Desde então, o tribunal saiu da letargia e parece se sentir mais confortável para impor freios ao presidente: suspendeu nomeação de amigo à chefia da Polícia Federal, autorizou a abertura de investigações criminais contra o presidente e seus ministros, determinou a adoção de providências para preservar a saúde de povos indígenas, barrou o compartilhamento de dados de usuários de serviços de telefonia com o IBGE e determinou prisão, bloqueio de perfis em redes sociais e investigação de apoiadores do presidente.

De outra parte, Bolsonaro tem enfrentado o Supremo, seja participando de atos que pedem seu fechamento, distorcendo o teor de decisões do tribunal ou manipulando o processo de indicação de ministros ao tribunal.

A disputa pela vaga em uma cadeira do Supremo tem amesquinhado as instituições, atraindo oportunistas de toda ordem: de procuradores da República a advogados da União, de ministros de governo a de tribunais superiores, todos parecem inconstrangíveis e firmes na função de agradar a Bolsonaro.

Burocracias de estado, como conselhos e carreiras de servidores públicos, são uma primeira forma de controle interno a possíveis desmandos autoritários. Não por outra razão, profissionais de carreira de órgãos ambientais e de saúde têm sido atacados desde o início do governo, e os conselhos, desmontados.

As carreiras do sistema de Justiça (como Ministério Público Federal e AGU) também seguem essa lógica, mas a hipertrofia de poder dada ao comando dessas instituições tem se mostrado perigosa, especialmente diante da promessa de uma vaga no Supremo.

André Mendonça, atual ministro da Justiça, comandou a AGU desde o início do governo Bolsonaro. Na posição que ocupa agora, assumidamente como homem de governo, promoveu a inusual impetração de um habeas corpus em favor do ex-ministro da Educação Abraham Weintraub (já rejeitado pelo Supremo), a defesa explícita de atos antidemocráticos e a inadmissível criação de uma seção de monitoramento de pessoas que defendem a democracia —já contestada no Supremo.

Mesmo antes de assumir a Justiça, Mendonça já imprimia igual tom de “vale-tudo pelo chefe” à frente da AGU, que parece ter incorporado a tática.

Ainda sob o comando de Mendonça, a AGU negou que tenha sido veiculada campanha contra as medidas de isolamento social, ainda que todos tenham visto as postagens da Secretaria de Comunicação (Secom) em redes sociais, e omitiu, deliberadamente, informações produzidas pelo Conselho Nacional de Saúde e requeridas pela ministra Rosa Weber (STF) para atestar o financiamento de políticas de saúde.

Agora, a Advocacia-Geral da União sob comando de José Levi se presta ao papel de defender a ditadura civil-militar brasileira e homenagens de Bolsonaro a Curió, reconhecido como torturador e mandante de assassinatos pela Comissão Nacional da Verdade, nunca é demais lembrar, órgão do estado brasileiro.

Para a AGU, “é metodologicamente possível se analisar os fatos do passado de forma diferenciada” para “conviver com as possíveis ou pontuais interpretações outras da cadeia de acontecimentos do mesmo período, que nem sempre vão revelar somente uma versão de aniquilação de direitos”.

Essa manifestação apaga não só a verdade como também o limite entre assuntos públicos e privados: um presidente que apoie a ditadura não pode transformar isso em política de Estado, assim como um presidente cristão não pode transformar o país em um Estado religioso. Quem estabelece esse limite é a Constituição, as leis e as decisões judiciais.

O ápice da submissão à lógica autocrática e ao "vale-tudo pelo chefe" está impresso na mais recente ação levada ao Supremo pelo presidente e pela AGU em favor de perfis de apoiadores do presidente em redes sociais.

Não houve nenhum constrangimento em movimentar a máquina pública e judicial para defesa de interesses pessoais de Bolsonaro —escamoteados na ação judicial e, ainda assim, evidentes.

É verdade que há muito se tem um debate sobre ser a AGU uma advocacia predominantemente de Estado ou de governo. Mas a questão aqui parece ser outra: é possível ter uma AGU em defesa de um projeto inconstitucional de governo?

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