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Ricardo Campos

Debate sobre artigo de projeto de fake news tem exercício de futurologia

Artigo sobre guarda de registros de encaminhamento de mensagens em massa é o mais polêmico do texto em discussão no Congresso

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Ricardo Campos

Docente assistente na Universidade de Frankfurt (Alemanha) e diretor do Instituto LGPD

Ocorreu uma profunda transformação na esfera pública com a chamada nova economia digital. Antes centrada em grandes organizações jornalísticas com Redação e controle editorial, a produção e circulação da informação social migrou das grandes organizações —seja rádio, televisão ou jornal impresso— para o novo modelo de negócios das plataformas digitais baseadas em algoritmos, acúmulo e tratamento de dados.

Nesse processo de migração, o direito e seus mecanismos de responsabilização não conseguiram acompanhar o desenvolvimento tecnológico na mesma velocidade. O assim chamado projeto de lei das fake news é uma tentativa de dar passos para sincronizar o descompasso no tema do combate a desinformação com viés criminoso.

Dentre os mecanismos para ajustar o descompasso entre responsabilização jurídica e transparência de novos mecanismos tecnológicos, o artigo 10 do projeto seria o mais polêmico. O centro do artigo é uma clara obrigação de guarda de registros de encaminhamento em massa para serviços de mensageria privada.

A sutileza é importante: primeiramente trata-se de um dever de guarda sobre dados de tráfego, e não de conteúdo. Segundo, essa obrigação não recai sobre mensagens autorais ou interpessoais, mas sobre mensagens com dimensão pública (viralização). E, por último, a requisição perante a empresa fica condicionada à decisão judicial.

No exemplo do WhatsApp, na técnica de encaminhamento de um arquivo de mídia, o remetente gera duas chaves efêmeras para criptografar, além de um código de autenticação para o arquivo. Esse conteúdo criptografado é armazenado em um servidor.

O remetente então envia uma mensagem criptografada ponta a ponta com o destinatário, contendo um apontador para esse conteúdo junto das chaves para descriptografar e autenticar o arquivo de mídia.

O destinatário pode recuperar o arquivo no servidor e localmente verificar sua autenticidade e descriptografá-lo. Dessa forma, embora os conteúdos estejam armazenados no servidor, o intermediador da comunicação não tem acesso ao conteúdo do arquivo.

A proposta do artigo 10 consiste em criar uma obrigação de armazenamento no servidor para o identificador de cada usuário que requisite acesso a qualquer arquivo de mídia junto com o horário dessa requisição. Essa solução não requer quebra da criptografia ponta a ponta.

O intermediador continua não tendo acesso ao conteúdo das mensagens trocadas. Vale a pena apontar também que os termos de serviço da aplicação não protegem os metadados da comunicação. Assim, o operador, por questões funcionais, mantém dados de tráfego.

Dever de guarda de dados é tampouco estranho ao ordenamento brasileiro e ao direito comparado. No direito brasileiro há diversos exemplos. Como na Lei de Organizações Criminosas que prevê o dever de guarda de determinados dados por empresas telefônicas, instituições financeiras, provedores de internet, administradoras de cartão de crédito e empresas de transporte pelo prazo de cinco anos.

Também na Lei de Lavagem de Dinheiro há previsão de retenção de dados. Mesmo o Marco Civil da Internet prevê o dever de retenção por seis meses dos registros eletrônicos.

O Brasil não está sozinho nesse caminho. No berço da proteção de dados no mundo, a Alemanha, há, dentre outros, dever de guarda de dados em seu parágrafo três da lei de regulação de redes sociais, conhecida como NetzDG em alemão.

A regra alemã é porém mais vasta que o artigo 10 do projeto brasileiro, pois inclui na obrigação não somente os dados de tráfego, mas também o conteúdo das mensagens.

O cerne da questão toca as bases fundacionais do Estado moderno, que desde seu surgimento reservou ao direito o papel de controlar somente a exterioridade da ação, protegendo do lado interno da consciência, quia cogitatio omnis libera est.

Os direitos comunicacionais são a maior expressão desse desenvolvimento: enquanto a comunicação individual é resguardada por um maior sigilo e privacidade, a comunicação pública dotada de exterioridade e impacto na formação da opinião pública exige maiores contornos jurídico-regulatórios para uma possível responsabilização por violação de direitos.

A Carta de Ulysses segue essa linhagem jurídico-ocidental ao reservar vários dispositivos para a regulação da comunicação de massa com severas restrições e condicionantes (artigos 220 a 224 da Constituição), garantindo, por outro lado, uma gama de inviolabilidades ligadas a dimensão individual da comunicação no catálogo de direitos fundamentais.

A própria Constituição brasileira faz a distinção entre comunicação de massa e comunicação privada.

Afirmar um caráter totalmente privado das relações na internet é entusiasmo anacrônico com o atual impacto do mundo digital tanto na violação quanto no exercício de direitos fundamentais e nos âmbitos da vida cotidiana.

Assim como direitos do trabalho, do consumidor e concorrencial vieram implementar normas de interesse público nas relações entre privados, o projeto de lei em questão busca assegurar maior responsabilidade jurídica por possíveis crimes nos espaços públicos criados pelas plataformas a partir de relações privadas.

O exercício de futurologia no debate sobre as consequências da implementação do artigo 10, por vezes esculpido em cenários apocalípticos por tons como vigilância em massa, fim da privacidade e decréscimo do debate público, esquece a natureza do processo legislativo.

Este não é regido pelos princípios basilares do trabalho jurisdicional como o iura novit curia, ou seja, pela divisão de trabalho entre juiz (elementos normativos) e partes (elementos fáticos). Devido à inerente legitimidade democrática e a orientação pelo interesse público, legislar exige uma prerrogativa de prognose.

Apenas em um segundo momento, acumulada experiência sobre a aplicação de um dispositivo legal, caso a avaliação dos efeitos da lei pelo legislador revele-se parcialmente ou totalmente equivocada, estabelece-se um dever de observação e correção pelo Judiciário ou pela corte constitucional.

Misturar esses distintos momentos é subjugar o papel do Legislativo dentro da estrutura do Estado democrático de Direito.

Como no mercado tradicional de bens, a possibilidade de responsabilização por manipulação criminosa é pressuposto para o bom funcionamento de qualquer mercado de ideias pujante e plural.

O mercado de ideias diferencia-se, por sua vez, do de bens em um importante aspecto: a manipulação criminosa do mercado de ideias gera impactos substanciais para os pilares da democracia, pilares os quais não se regeneram espontaneamente pela simples lógica de mercado.

A quem interessa afastar a aplicação do direito e de mecanismos de responsabilização do mundo digital?

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