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Lei das fake news pode ser útil, mas especialistas pedem cautela ao Congresso

Folha consultou 24 especialistas sobre problemas e pontos positivos de projeto contra a desinformação

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São Paulo

Ao longo da atual tramitação do projeto de lei das fake news no Congresso ocorreram diversas manifestações da sociedade civil e da academia contrárias à votação do texto, aprovado no Senado e agora em discussão na Câmara.

Parte dos posicionamentos contrários defendia que um debate que pode ter impacto negativo para a liberdade de expressão deveria ser discutido com calma e fora do contexto da pandemia do coronavírus. Há também quem argumente que uma lei não seria o caminho ideal para lidar com o tema.

A Folha consultou no último mês 24 especialistas sobre o conteúdo e a relevância do projeto de lei, entre pesquisadores, advogados, jornalistas e organizações da sociedade civil.

A grande maioria se mostrou favorável à aprovação de uma lei para combater a desinformação. No entanto, poucos veem nesse projeto uma solução para o combate às notícias falsas. Para parte deles, o texto é importante, mas apenas como um dos pilares para este combate.

Entre os mais críticos, o principal ponto questionado é a provável falta de eficácia do projeto para este fim e também a possibilidade de que, no todo, a lei traga mais riscos do que benefícios a direitos individuais, como liberdade de expressão e privacidade.

Há também os que são contrários à aprovação da lei, por considerarem que os atuais mecanismos jurídicos já são suficientes, e os que não veem maturidade para aprovação de um projeto neste período.

Também há quem critique o projeto pela ausência de foco no que seria a raiz do problema: as redes de desinformação organizadas.

Mesmo entre os favoráveis à aprovação de alguma lei para combater a desinformação, fica claro que há bastante divergência sobre qual seria o caminho ideal.

Para a advogada Patricia Peck, a aprovação de uma lei para combater desinformação se faz urgente e essencial. "Não vamos conseguir ter uma lei perfeita, mas precisamos buscar ter uma lei que possa ser eficiente e sujeita a melhorias futuras."

Segundo ela, o modelo de negócios das plataformas precisa ser revisto. "O usuário precisa saber e diferenciar quando é um perfil humano ou quando há manipulação de robôs. Informação com grande alcance parece correta e relevante. Por isso, é necessário que haja transparência. Hoje quem paga mais é quem consegue maior abrangência."

Já o advogado e cientista social Caio Machado, apesar de também se dizer favorável a uma legislação sobre o tema, sustenta que o projeto aprovado no Senado partiu de pressupostos equivocados, demonstrando falta de compreensão de como funciona a desinformação e suas diferentes estratégias.

"Ele [projeto] parte de um pressuposto de que há uma mentira e que a mentira precisa ser cerceada e que essa mentira é alavancada por robôs e que a gente pode identificar esses robôs e acabou."

Segundo Machado, o problema é muito mais complexo e envolve dimensões políticas, técnicas e econômicas.

Ao longo da tramitação no Senado, o projeto abandonou a tentativa complexa de definir o que é desinformação e optou por focar em comportamento, ao vedar robôs não identificados e contas inautênticas.

Cristina Tardáguila, diretora-adjunta da rede de agências de checagem International Fact-Checking Network (IFCN), foi uma das especialistas que se disse contrária à opção pelo caminho legislativo.

"Segundo dados colhidos pela IFCN nos últimos dois anos e em mais de 60 países, nenhuma nação que optou por legislar contra as notícias falsas efetivamente registrou diminuição na quantidade de peças desinformativas flagradas todos os dias", afirmou.

Além disso, muitos apontaram que, ainda que a legislação possa ser uma ferramenta importante para lidar com a desinformação, é preciso atuar em diferentes frentes, como pontuou a doutora em direito público pela Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) Clara Iglesias Keller.

"O combate à desinformação deve ser multicamadas, ou seja, ele não se esgota nessa lei. Também depende de proteção de dados, educação midiática, checagem de fatos, ações eleitorais e uma série de outras medidas que cabem a muitos agentes. Não é um debate exclusivo dessa lei, nem do Legislativo."

A Folha também indagou aos especialistas sobre quais pontos do projeto eles manteriam, retirariam ou incluiriam prioritariamente, caso pudessem alterá-lo.

A criação de um conselho estatal com poder de regulação parece ser um dos pontos que mais divide opiniões. Ao mesmo tempo em que o conselho foi um dos itens mais citados como ponto positivo da lei, recebeu críticas na mesma proporção. Parte defende que o conselho não deveria ser criado.

Segundo o projeto, o conselho teria entre suas atribuições o acompanhamento e avaliação das medidas estabelecidas pela lei e a criação de um código de conduta. Ele seria composto por 21 membros, entre eles representantes da sociedade civil, das empresas, do Congresso Nacional e das polícias Civil e Federal.

Mesmo entre os que defendem sua criação, muitos citam a necessidade de que a composição do conselho fosse outra, de modo a impedir influências políticas no órgão.

Há ainda quem defenda somente reformular as atribuições da nova entidade, seja tornando o conselho consultivo, seja retirando dele a responsabilidade de elaborar um código de conduta relacionado à desinformação.

Pontos mais criticados

O ponto mais criticado foi a rastreabilidade em serviços de mensagem, como WhatsApp e Telegram. Uma pequena parcela, no entanto, defende a medida.

Segundo o dispositivo, os registros das mensagens que forem encaminhadas para grupos por mais de cinco usuários e recebidas por mais de mil, em um período de 15 dias, devem ser guardados por três meses. O conteúdo não deve ser armazenado.

Já o segundo item mais criticado foi a possibilidade de as plataformas exigirem documento de identidade em algumas situações, como em caso de denúncia da conta e de ordem judicial.

Pontos de maior consenso

O aspecto mais citado como positivo pelos consultados se refere às regras que determinam maior transparência nas redes sociais, tanto com relatórios sobre moderação quanto em relação a conteúdos impulsionados e patrocinados, inclusive com dados dos anunciantes responsáveis.

Em seguida, ficou a questão das regras de moderação para as plataformas, que ficam obrigadas, caso decidam retirar algum conteúdo, a notificar os usuários com os fundamentos da medida tomada, dando a possibilidade de recurso.

No entanto, muitos apontaram que, apesar de as regras de moderação serem positivas, este trecho do projeto ainda precisaria de melhorias. Entre eles, entretanto, não há consenso de qual seria o modelo ideal.

Outro ponto bastante citado como positivo é a parte do projeto que determina regras diferenciadas para o poder público. Tanto em relação a contas de políticos e órgãos públicos, que ficam impedidas de bloquear usuários, quanto à proibição de publicidade estatal em determinados sites que, por exemplo, promovam a violência.

O que poderia ser incluído

Em relação ao que inseririam no projeto, as sugestões foram extremamente variadas, mas um dos pontos que se repetiu entre alguns dos entrevistados foi a ausência no projeto de ferramentas para identificar redes organizadas e articuladas de desinformação.

Houve também alguns que disseram que evitariam incluir qualquer novo ponto no projeto, dada a dificuldade que já tem sido debater a versão atual. Da mesma forma como alguns disseram que não retirariam nada, apenas fariam melhorias.

Alguns também mencionaram a necessidade de inclusão de punição ou responsabilização no projeto, porém com abordagens distintas. Mesmo entre estes, entretanto, poucos defenderam a criação de um novo tipo penal, algo que chegou a constar no projeto durante a tramitação no Senado, mas caiu antes de ir para a Câmara.​

O pesquisador do Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação da FGV Victor Doering é um dos que defendem que a lei deveria ter mecanismos do que ficou conhecido como "siga o dinheiro" (follow the money, em inglês), prevendo formas de identificação de redes de financiamento que sustentam campanhas de desinformação.

"Essas redes de financiamento extrapolam as plataformas e, até o momento, a proposta [do Senado] tem pretendido quase que exclusivamente regular a atuação delas", afirmou.

*

Foram consultados para esta reportagem os seguintes especialistas e organizações:

Ana Frazão (professora da Universidade de Brasília), Caio Machado (advogado especialista em direito digital), Carlos Affonso de Souza (diretor do ITS Rio), Chiara de Teffé (professora de direito e tecnologia no IBMEC), Cíntia Rosa Lima e Maria Eduarda de Sousa (professora de direito da USP Ribeirão Preto e orientanda, respectivamente), Clara Iglesias Keller (doutora em direito público), Cristina Tardáguila (diretora-adjunta da IFCN), Danilo Doneda (advogado especialista em proteção de dados), Eugênio Bucci (jornalista e professor da ECA), Flávia Lefèvre (conselheira do Intervozes), Francisco Brito Cruz (diretor do InternetLab), Francisto Mesquita Laux (advogado especialista em tecnologia), Instituto Liberdade Digital, Ivar Hartmann (coordenador do CTS-FGV), Joana Varon (diretora da Coding Rights), José Milagre (perito em crimes cibernéticos), Luiz Augusto D’Urso (advogado especialista em cibercrimes), Luiza Brandão e Paloma Rocillo (IRIS - Instituto de Referência em Internet e Sociedade), Marcelo Träsel (presidente da Abraji), Patricia Peck (advogada especialista em direito digital), Paulo Rená (Instituto Beta), Renato Opice Blum (advogado especialista em proteção de dados), Ricardo Campos (diretor do Instituto LGPD) e Victor Doering (CEPI-FGV)

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