Bolsonaro incrementa verba para ruralistas e reduz quase a zero a reforma agrária

Programas do Incra para assentados e sem-terra tiveram corte de mais de 90% no orçamento previsto para 2021

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Brasília

O governo de Jair Bolsonaro enviou ao Congresso uma proposta de orçamento para o Incra em 2021 que praticamente reduz a zero a verba de algumas das principais ações destinadas a sem-terra e a melhorias dos assentamentos, ao mesmo tempo em que eleva o dinheiro reservado para o pagamento de indenização judicial a fazendeiros que tiveram suas propriedades desapropriadas.

A medida acentua um esvaziamento iniciado na gestão de Michel Temer (2016-2018) e projeta um cenário de extinção da reforma agrária, que já sofre paralisia desde o início do atual governo.

Em números absolutos, o orçamento do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) para 2021 até tem uma elevação de 4%, em relação ao aprovado para 2020 —de R$ 3,3 bilhões para R$ 3,4 bilhões.

Desse total, porém, 66% (R$ 2,1 bilhões) foram reservados para o pagamento de precatórios, ou seja, dívidas com fazendeiros que conseguiram na Justiça elevar o valor de indenização por terras desapropriadas por improdutividade —um aumento de 22% em relação ao orçamento deste ano.

O presidente Jair Bolsonaro e o secretário de Assuntos Fundiários, Luiz Antônio Nabhan Garcia
O presidente Jair Bolsonaro e o secretário de Assuntos Fundiários, Luiz Antônio Nabhan Garcia - Carolina Antunes/PR

Em linha oposta, programas finalísticos da reforma agrária foram praticamente dizimados. Assistência Técnica e Extensão Rural, Promoção de Educação no Campo e Reforma Agrária e Regularização Fundiária tiveram redução de mais de 99% de verba, ficando próximo de zero.

A tesoura nas ações de reconhecimento e indenização de territórios quilombolas, concessão de crédito às famílias assentadas e aquisição de terras ficou acima de 90%. Monitoramento de conflitos agrários e pacificação no campo sofreu corte de 82% e a consolidação de assentamentos rurais, 71%.

Os números foram compilados pela assessoria da Liderança do PT na Câmara e confirmados pela Folha no Incra e no Projeto de Lei Orçamentária do governo federal para 2021. A proposta, enviada ao Congresso no último dia 31, pode ser alterada por deputados e senadores.

Após o auge observado durante o ano de 2006, no governo Lula (PT), o número de famílias sem terra assentadas passou por um declínio no governo Dilma Rousseff (PT), mas a queda se acentuou de forma aguda a partir de Temer.

Durante a campanha, Bolsonaro chegou a classificar o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) de grupo terrorista.

Ao assumir o governo, em 2019, paralisou os processos de aquisição, desapropriação ou outra forma de obtenção de terras para a reforma agrária, além da identificação e delimitação de territórios quilombolas.

Ao final de seu primeiro ano de gestão, o Incra tinha 66 projetos de assentamento para reforma agrária, mas o governo não havia assentado nenhuma família nesses locais.

Os dados do Incra apontam 5.428 famílias assentadas em 2019, mas isso se refere a processos antigos de agricultores que ocupavam áreas sem autorização da autarquia.

Sob Bolsonaro, o Incra passou a ser subordinado ao Ministério da Agricultura, controlado pelos ruralistas e sob o abrigo do qual está a Secretaria Especial de Assuntos Fundiários, chefiada pelo pecuarista Nabhan Garcia, um antigo adversário do MST .

A ministra Tereza Cristina (Agricultura) e o próprio presidente do Incra, Geraldo José da Camara Ferreira de Melo Filho, são ruralistas.

A Constituição determina, em seu artigo 184, que compete à União "desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização".

Em artigo publicado em julho, a Cnasi (Confederação Nacional das Associações dos Servidores do Incra) afirma que neste ano a autarquia completou 50 anos "em um dos piores momentos de sua história, com enorme retração de seu orçamento, abandono das ações de democratização de acesso à terra e um terço dos servidores que tinha na sua fundação".

De acordo com a entidade, os atuais gestores atuam unicamente na entregar de títulos de propriedade a assentados da reforma agrária e a posseiros que ocupam terras da União, "com destaque para áreas da Amazônia Legal".

"O orçamento proposto é para liquidar, para acabar com qualquer perspectiva de reforma agrária no Brasil, para acabar com a instituição Incra. A sociedade e os movimentos sociais do campo têm que fazer uma reação grande agora. E nós, do Parlamento, vamos ter brigar muito", afirmou o deputado federal Beto Faro (PT-PA).

O sociólogo e professor da UnB (Universidade de Brasília) Sérgio Sauer chama a atenção para notícias de que, mesmo no caso de terras já desapropriadas, o Incra estaria desistindo dos processos de assentamento sob a alegação de falta de orçamento.

Para ele, a situação tende a agravar a pobreza no campo, a desigualdade e os conflitos.

"O Incra está completamente paralisado. Antes tinha uma ouvidoria agrária que, de alguma foram, mediava alguns casos de conflito no campo. Agora, está proibido, por regras internas, de fazer essa mediação, então o cenário é de agravamento, como aconteceu recentemente em Minas."

Sauer se refere a uma ação de reintegração de posse em agosto que resultou em tensão e feridos em uma área invadida por um grupo do MST, em Campo do Meio (MG).

Dois ex-ministros de desenvolvimento agrário ouvidos pela Folha fazem análises distintas sobre o tema.

Raul Jungmann, chefe da pasta de Política Fundiária (que virou Desenvolvimento Agrário), de 1996 a 2002, no governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB), disse que a reforma deixou de ser uma questão política relevante, por três fatores.

A ampliação da população urbana, o crescimento dos programas sociais, em especial o Bolsa Família, e a mudança de posição do MST de movimento de oposição para movimento governista, durante as gestões do PT.

"Não é que não precise. Precisa ter ainda, em alguns aspectos pontuais, mas aquela pressão pela reforma agrária e aquela agressividade política deixaram de existir. Não está mais na agenda do país. A partir de 1964 [golpe militar], saiu da agenda política nacional. Ela volta com o MST, com o massacre de Eldorado do Carajás [no Pará, em 1996, quando 19 sem-terra foram mortos por policiais militares] e tudo aquilo que se sucedeu. Então, novamente, a reforma agrária saiu da agenda nacional enquanto fato político."

Jungmann também foi ministro (Defesa e Segurança Pública) na gestão Temer.

Guilherme Cassel, ministro de Desenvolvimento Agrário de 2006 a 2010, no governo Lula, afirma não haver surpresa nos atuais números orçamentários do Incra.

"É a continuidade de uma política que tenta sabotar um processo de reforma agrária. É um governo que não desapropria área, persegue os movimentos sociais, não investe na qualidade dos assentamentos", afirma.

"O mais grave é que você está atingindo fortemente a produção de alimentos", diz o ex-ministro, acrescentando que a elevação dos recursos para pagamentos de precatórios, em sua visão, é "um gesto para os amigos que foram desapropriados por falta de produtividade".

Outro lado

O Incra afirmou, em nota, não ter ingerência em relação aos recursos para o pagamento de despesas com sentenças judiciais e que não sofreu pressão de ruralistas.

Segundo a autarquia, o incremento se deu por alteração na lei, de 2017, que determinou que os valores de indenizações judiciais "seriam pagos por meio de precatórios e não mais por expedição de TDAs [Título da Dívida Agrária] complementares".

Sobre os cortes nos programas finalísticos, disse que o projeto de orçamento foi elaborado "com base no referencial monetário indicado ao Incra" e que houve priorização de despesas de custeio, como as fiscalizações nos assentamentos.

A autarquia disse ainda que nas discussões do Orçamento-2021 no Congresso irá trabalhar para "reforçar as verbas destinadas as ações finalísticas".

O Ministério da Agricultura disse, também em nota, que em razão do ajuste fiscal a pasta sofreu um bloqueio de R$ 240 milhões, sendo necessário a readequações de valores, e que a secretaria comandada por Nabhan não tem ingerência sobre o orçamento alocado para o Incra.

O ministério também disse que irá tentar elevar os valores no Congresso e reforçou que trabalha para agilizar processos de regularização fundiária em terras da união e em assentamentos.

"O objetivo é que a titulação seja concedida para aqueles que têm direto e vocação para a produção, oferecendo segurança jurídica e garantia ao direito de propriedade."

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