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Pablo Bello

É preciso esclarecer o que é o WhatsApp em debate sobre projeto de lei das fake news

Rastreabilidade implicaria na investigação criminal do usuário comum e não ajudaria no enfrentamento à desinformação

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Pablo Bello

É diretor de Políticas Públicas de WhatsApp para América Latina

A desinformação é um problema sério que deve ser enfrentado por todos. A solução de longo prazo para o combate à desinformação reside na promoção da educação cívica e na ampliação de boa informação acessível aos cidadãos.

Algumas das iniciativas de curto prazo para lidar com a desinformação colocam em tensão valores sociais de maior relevância, incluindo direitos humanos fundamentais, e não resolvem o problema.

É por isso que as opções de políticas públicas precisam ser avaliadas cuidadosamente levando em conta os fatores tecnológicos.

Há muitos tipos de desinformação que demandam respostas diferentes. A preocupação mais urgente no Brasil é a desinformação orquestrada com o objetivo de afetar a convivência social e as instituições democráticas.

Esse uso sistemático da desinformação como arma política deve ser combatido nas sociedades democráticas. O desafio é formular instrumentos regulatórios adequados para coibir essa prática.

Novo recurso doWhatsApp está em teste no Brasil e mais seis países
Novo recurso doWhatsApp está em teste no Brasil e mais seis países - Dado Ruvic/Reuters

A solução natural seria apelar à responsabilidade dos atores políticos, para que se abstenham de tais ações, mas essa chamada muitas vezes não é eficaz.

Para regular as tecnologias de maneira adequada, primeiro é necessário entender como elas funcionam.

Infelizmente, existem muitas imprecisões no debate sobre o PL 2630/2020, já aprovado pelo Senado e conhecido como "Projeto de Lei das Fake News", em especial no que diz respeito à rastreabilidade de mensagens privadas (art. 10).

Para apoiar um debate baseado em fatos e evidências, é preciso esclarecer o que é o WhatsApp e como ele funciona.

Não se pode esquecer o que representa o WhatsApp hoje para a economia e a sociedade brasileiras: 94% dos brasileiros se comunicam pelo WhatsApp, 64% usam o aplicativo para trabalhar, e 83% o utilizam para comprar, principalmente de pequenas empresas e comércios locais.

O WhatsApp é um aplicativo que contribui para o progresso econômico e social do Brasil. Isso não significa que não haja problemas, ou que esses problemas não sejam importantes.

Mas não se pode perder de vista o verdadeiro papel social do WhatsApp só porque uma minoria utiliza a plataforma de maneira inadequada.

O WhatsApp é um aplicativo de mensagens privadas. Não é uma rede social e não foi projetado para o envio de mensagens em massa.

Mais de 90% das mensagens são individuais, enviadas de uma pessoa para outra. Menos de 5% são encaminhamentos e apenas 0,5% são mensagens "frequentemente encaminhadas", ou seja, enviadas mais de cinco vezes. Os grupos de WhatsApp no Brasil têm, em média, menos de sete membros.

O aplicativo tem restrições de design para impedir que uma pessoa envie uma mensagem para milhares de usuários.

Também tem sistematicamente introduzido modificações para reduzir a viralidade na plataforma, limitando o encaminhamento de mensagens para cinco conversas por vez, e para uma única conversa, caso essa mensagem já tenha sido compartilhada mais de cinco vezes.

A primeira limitação reduziu o número total de mensagens reenviadas em 30% e, a segunda diminuiu em 70% a quantidade de mensagens frequentemente compartilhadas. Não há outra plataforma de mensagens que tenha introduzido de forma tão incisiva restrições ao seu uso.

A proposta de rastreabilidade de mensagens privadas prevista no art. 10 do PL 2630/2020 deve ser analisada a partir das premissas do produto.

Além de ineficiente, por desconsiderar como se dá o fluxo de informação na rede e porque as cadeias de encaminhamento são facilmente interrompidas e manipuladas, é desproporcional e preocupante, por atacar a privacidade dos brasileiros.

A rastreabilidade implicaria na investigação criminal do usuário comum e não atingiria o objetivo central: enfrentar a desinformação profissional.

O artigo 10 exigiria uma modificação estrutural do WhatsApp, de forma a incorporar um mecanismo de supervigilância capaz de rastrear todas as interações que todos os usuários realizariam durante um período de três meses.

O argumento de que a rastreabilidade se limitaria apenas às mensagens virais é inconsistente. Não é possível saber com antecedência se uma mensagem será encaminhada, se será compartilhada em grupos ou listas de transmissão.

Qualquer mecanismo de rastreamento teria que ser implementado para todas e cada uma das mensagens. Seriam bilhões de mensagens por dia, sobre as quais um selo de origem e destino teria que ser aplicado.

É preciso esclarecer que o WhatsApp não tem registros das interações de seus usuários, não sabe se uma dada mensagem é viral ou não, e não consegue ler o conteúdo das comunicações privadas. Esses elementos compõem o DNA do WhatsApp e a criptografia de ponta a ponta.

O sistema para identificar encaminhamentos funciona através de um contador que está nos metadados criptografados de cada mensagem. É o aplicativo, no telefone de cada usuário, que lê o contador, adiciona os indicadores correspondentes, e faz as limitações de encaminhamento. Tudo isso acontece no terminal do usuário sem ingerência do WhatsApp.

Celulares usados em empresa para enviar mensagens de WhatsApp em massa
Celulares usados em empresa para enviar mensagens de WhatsApp em massa - Reprodução

Para implementar o artigo 10, as informações de destino e de origem de cada interação deveriam ser armazenadas nos metadados de cada mensagem.

Além disso, se a lei exigir que o WhatsApp forneça dados sobre a cadeia de encaminhamento, a empresa teria que manter uma cópia de todas as mensagens e poder ler seus metadados.

Para isso teria que quebrar a criptografia. Igualmente, se a plataforma fosse obrigada a saber se uma mensagem foi encaminhada e quantas vezes, o WhatsApp teria que criar uma forma —atualmente não existente— de identificar cada mensagem de maneira única e descriptografá-la no nível do servidor, o que hoje é tecnicamente impossível.

O artigo 10 do PL é incompatível com a criptografia de ponta a ponta. Ao exigir que o servidor central armazene e faça a correlação entre conteúdo e usuários, a proposta rompe com a proteção da criptografia de que terceiros não devem acessar o conteúdo das conversas.

São os valores fundantes do WhatsApp que estão em jogo. Estabelecer um sistema de vigilância de todas as interações subverte a característica primordial de uma plataforma de comunicação privada.

Em benefício do usuário e para uma distribuição eficiente de mensagens com arquivos multimídia, o WhatsApp mantém temporariamente os arquivos criptografados em um servidor, mas sem acesso a conteúdo.

Esses arquivos e seus códigos são específicos para uma dada instância em que é compartilhado. Assim, conteúdos exatamente iguais têm códigos temporários diferentes.

Além disso, não há geração de dados nem guarda de informação que vincule usuários e acesso a esses conteúdos. Esse mecanismo existe para proteger os usuários e não permite o seu rastreamento.

Algumas pessoas pretendem distorcer esse mecanismo e sua lógica de funcionamento para incluir no debate a ideia de que já existiria uma técnica que possibilita rastreabilidade. Isso é falso.

Nenhum país do mundo implementou um sistema de rastreabilidade como o aprovado pelo Senado brasileiro.

A Anistia Internacional, a Human Rights Watch, a Internet Society, a Coalizão Global para a Criptografia, os relatores das Nações Unidas para a Privacidade e a Liberdade de Expressão, o relator da Organização dos Estados Americanos para a Liberdade de Expressão, bem como praticamente a unanimidade da sociedade civil brasileira e da comunidade científica internacional apontaram os problemas técnicos e de direitos humanos contidos no artigo 10.

Existem maneiras de lidar com a desinformação em plataformas de mensagens privadas, e o WhatsApp implementou muitas melhorias nesse sentido. Como parte de seu compromisso democrático, o WhatsApp apoia a proibição, em lei, de envios em massa, e propõe o uso da técnica investigativa apenas sobre contas suspeitas individualizadas, após uma ordem judicial.

Tanto a proibição de disparos massivos quanto a técnica investigativa prospectiva são mecanismos eficazes para identificar estruturas sistemáticas de desinformação profissional.

Esse é o caminho tecnicamente correto que respeita a privacidade dos usuários e mantém íntegra a criptografia de ponta a ponta para a segurança das comunicações.

Pablo Bello
É diretor de Políticas Públicas de WhatsApp para América Latina

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