A desinformação é um problema sério que deve ser enfrentado por todos. A solução de longo prazo para o combate à desinformação reside na promoção da educação cívica e na ampliação de boa informação acessível aos cidadãos.
Algumas das iniciativas de curto prazo para lidar com a desinformação colocam em tensão valores sociais de maior relevância, incluindo direitos humanos fundamentais, e não resolvem o problema.
É por isso que as opções de políticas públicas precisam ser avaliadas cuidadosamente levando em conta os fatores tecnológicos.
Há muitos tipos de desinformação que demandam respostas diferentes. A preocupação mais urgente no Brasil é a desinformação orquestrada com o objetivo de afetar a convivência social e as instituições democráticas.
Esse uso sistemático da desinformação como arma política deve ser combatido nas sociedades democráticas. O desafio é formular instrumentos regulatórios adequados para coibir essa prática.
A solução natural seria apelar à responsabilidade dos atores políticos, para que se abstenham de tais ações, mas essa chamada muitas vezes não é eficaz.
Para regular as tecnologias de maneira adequada, primeiro é necessário entender como elas funcionam.
Infelizmente, existem muitas imprecisões no debate sobre o PL 2630/2020, já aprovado pelo Senado e conhecido como "Projeto de Lei das Fake News", em especial no que diz respeito à rastreabilidade de mensagens privadas (art. 10).
Para apoiar um debate baseado em fatos e evidências, é preciso esclarecer o que é o WhatsApp e como ele funciona.
Não se pode esquecer o que representa o WhatsApp hoje para a economia e a sociedade brasileiras: 94% dos brasileiros se comunicam pelo WhatsApp, 64% usam o aplicativo para trabalhar, e 83% o utilizam para comprar, principalmente de pequenas empresas e comércios locais.
O WhatsApp é um aplicativo que contribui para o progresso econômico e social do Brasil. Isso não significa que não haja problemas, ou que esses problemas não sejam importantes.
Mas não se pode perder de vista o verdadeiro papel social do WhatsApp só porque uma minoria utiliza a plataforma de maneira inadequada.
O WhatsApp é um aplicativo de mensagens privadas. Não é uma rede social e não foi projetado para o envio de mensagens em massa.
Mais de 90% das mensagens são individuais, enviadas de uma pessoa para outra. Menos de 5% são encaminhamentos e apenas 0,5% são mensagens "frequentemente encaminhadas", ou seja, enviadas mais de cinco vezes. Os grupos de WhatsApp no Brasil têm, em média, menos de sete membros.
O aplicativo tem restrições de design para impedir que uma pessoa envie uma mensagem para milhares de usuários.
Também tem sistematicamente introduzido modificações para reduzir a viralidade na plataforma, limitando o encaminhamento de mensagens para cinco conversas por vez, e para uma única conversa, caso essa mensagem já tenha sido compartilhada mais de cinco vezes.
A primeira limitação reduziu o número total de mensagens reenviadas em 30% e, a segunda diminuiu em 70% a quantidade de mensagens frequentemente compartilhadas. Não há outra plataforma de mensagens que tenha introduzido de forma tão incisiva restrições ao seu uso.
A proposta de rastreabilidade de mensagens privadas prevista no art. 10 do PL 2630/2020 deve ser analisada a partir das premissas do produto.
Além de ineficiente, por desconsiderar como se dá o fluxo de informação na rede e porque as cadeias de encaminhamento são facilmente interrompidas e manipuladas, é desproporcional e preocupante, por atacar a privacidade dos brasileiros.
A rastreabilidade implicaria na investigação criminal do usuário comum e não atingiria o objetivo central: enfrentar a desinformação profissional.
O artigo 10 exigiria uma modificação estrutural do WhatsApp, de forma a incorporar um mecanismo de supervigilância capaz de rastrear todas as interações que todos os usuários realizariam durante um período de três meses.
O argumento de que a rastreabilidade se limitaria apenas às mensagens virais é inconsistente. Não é possível saber com antecedência se uma mensagem será encaminhada, se será compartilhada em grupos ou listas de transmissão.
Qualquer mecanismo de rastreamento teria que ser implementado para todas e cada uma das mensagens. Seriam bilhões de mensagens por dia, sobre as quais um selo de origem e destino teria que ser aplicado.
É preciso esclarecer que o WhatsApp não tem registros das interações de seus usuários, não sabe se uma dada mensagem é viral ou não, e não consegue ler o conteúdo das comunicações privadas. Esses elementos compõem o DNA do WhatsApp e a criptografia de ponta a ponta.
O sistema para identificar encaminhamentos funciona através de um contador que está nos metadados criptografados de cada mensagem. É o aplicativo, no telefone de cada usuário, que lê o contador, adiciona os indicadores correspondentes, e faz as limitações de encaminhamento. Tudo isso acontece no terminal do usuário sem ingerência do WhatsApp.
Para implementar o artigo 10, as informações de destino e de origem de cada interação deveriam ser armazenadas nos metadados de cada mensagem.
Além disso, se a lei exigir que o WhatsApp forneça dados sobre a cadeia de encaminhamento, a empresa teria que manter uma cópia de todas as mensagens e poder ler seus metadados.
Para isso teria que quebrar a criptografia. Igualmente, se a plataforma fosse obrigada a saber se uma mensagem foi encaminhada e quantas vezes, o WhatsApp teria que criar uma forma —atualmente não existente— de identificar cada mensagem de maneira única e descriptografá-la no nível do servidor, o que hoje é tecnicamente impossível.
O artigo 10 do PL é incompatível com a criptografia de ponta a ponta. Ao exigir que o servidor central armazene e faça a correlação entre conteúdo e usuários, a proposta rompe com a proteção da criptografia de que terceiros não devem acessar o conteúdo das conversas.
São os valores fundantes do WhatsApp que estão em jogo. Estabelecer um sistema de vigilância de todas as interações subverte a característica primordial de uma plataforma de comunicação privada.
Em benefício do usuário e para uma distribuição eficiente de mensagens com arquivos multimídia, o WhatsApp mantém temporariamente os arquivos criptografados em um servidor, mas sem acesso a conteúdo.
Esses arquivos e seus códigos são específicos para uma dada instância em que é compartilhado. Assim, conteúdos exatamente iguais têm códigos temporários diferentes.
Além disso, não há geração de dados nem guarda de informação que vincule usuários e acesso a esses conteúdos. Esse mecanismo existe para proteger os usuários e não permite o seu rastreamento.
Algumas pessoas pretendem distorcer esse mecanismo e sua lógica de funcionamento para incluir no debate a ideia de que já existiria uma técnica que possibilita rastreabilidade. Isso é falso.
Nenhum país do mundo implementou um sistema de rastreabilidade como o aprovado pelo Senado brasileiro.
A Anistia Internacional, a Human Rights Watch, a Internet Society, a Coalizão Global para a Criptografia, os relatores das Nações Unidas para a Privacidade e a Liberdade de Expressão, o relator da Organização dos Estados Americanos para a Liberdade de Expressão, bem como praticamente a unanimidade da sociedade civil brasileira e da comunidade científica internacional apontaram os problemas técnicos e de direitos humanos contidos no artigo 10.
Existem maneiras de lidar com a desinformação em plataformas de mensagens privadas, e o WhatsApp implementou muitas melhorias nesse sentido. Como parte de seu compromisso democrático, o WhatsApp apoia a proibição, em lei, de envios em massa, e propõe o uso da técnica investigativa apenas sobre contas suspeitas individualizadas, após uma ordem judicial.
Tanto a proibição de disparos massivos quanto a técnica investigativa prospectiva são mecanismos eficazes para identificar estruturas sistemáticas de desinformação profissional.
Esse é o caminho tecnicamente correto que respeita a privacidade dos usuários e mantém íntegra a criptografia de ponta a ponta para a segurança das comunicações.
Pablo Bello
É diretor de Políticas Públicas de WhatsApp para América Latina
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