Entidades afro e especialistas cobram fiscalização eleitoral para autodeclaração de cor

Avaliação de candidatos que se declararem pardos ou pretos pode evitar fraude na distribuição de recursos eleitorais

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Salvador e São Paulo

Em meio à discussão sobre a criação de cota financeira do fundo eleitoral para candidatos negros, entidades do movimento negro, pesquisadores e núcleos afros dos partidos defendem uma regulamentação da nova regra e a implantação de mecanismos de fiscalização para evitar possíveis fraudes.

Conforme revelado pela Folha nesta sexta-feira (25), ao menos 21 mil candidatos de todo o país que disputarão as eleições municipais deste ano para prefeito ou vereador mudaram a declaração de cor e raça que deram no último pleito, em 2016, conforme registros disponibilizados até agora pela Justiça Eleitoral.

A maior parte das mudanças —36% do total— foi da cor branca para parda. O movimento contrário vem na sequência, com 30% das alterações de pardo para branco. Outros 22% mudaram de pardo para preto ou preto para pardo.

Na avaliação de especialistas, vários fatores podem explicar as mudanças. Um deles é a forma como o registro é feito junto à Justiça Eleitoral, afirma o sociólogo Luiz Augusto Campos, professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

“Você tem muito preenchimento que sequer é feito pelo candidato. Não excluo pessoas que realmente mudaram o modo de se enxergar, mas na minha opinião, o grosso que explica isso é a displicência em relação ao preenchimento mesmo."

O cientista político da UnB (Universidade de Brasília) Carlos Machado acrescenta que não há uma orientação do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) ou da legislação acerca da interpretação que é feita sobre esse dado por quem preenche a informação.

“Autodeclaração é como a pessoa se percebe. Quando a gente discute políticas de ação afirmativa, não estamos falando de identidade, mas da presença de fenótipos negros."

Outro aspecto apontado pelo cofundador da Uneafro Brasil e da Coalizão Negra por Direitos, Douglas Belchior, é que os dados do IBGE mostram há mais de uma década uma alta crescente de autodeclarados pretos e pardos na população.

Ele classifica como “reação conservadora e racista” associar a mudança na autodeclaração à política aprovada pela Justiça Eleitoral em favor dos negros.

“O grande problema é que esse tipo de abordagem, dando luz à fraude, de alguma maneira enfraquece o lado positivo e a importância da política de forma deliberada, o que a gente não pode aceitar."

Aprovada para as eleições de 2022, a distribuição proporcional de recursos para candidatos negros foi antecipada para as eleições municipais deste ano por decisão liminar (provisória) do ministro Ricardo Lewandowski, do STF (Supremo Tribunal Federal). O caso ainda deve ser analisado pelo plenário da corte.

A mudança é celebrada pelas organizações e especialistas como uma forma de superar a barreira financeira, vista como um dos principais obstáculos para que mais negros sejam eleitos no país.

Para que a política seja efetivada, especialistas defendem instrumentos, como a adoção de procedimentos heteroidentificação, no qual os candidatos que se declararem pardos ou pretos sejam submetidos à avaliação de bancas formadas por especialistas.

“Não basta se autodeclarar. É preciso que isso seja confirmado por uma avaliação baseada no fenótipo”, afirma o professor Samuel Vida, coordenador do programa Direito e Relações Raciais da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Os núcleos afro dos partidos políticos vão na mesma direção. Presidente do Tucanafro, do PSDB, Gabriela Cruz também defende a heteroidentificação. Mas afirma que é preciso uma regulamentação com regras claras para respaldar os questionamentos a possíveis fraudes.

“Os próprios núcleos afro dos partidos podem ajudar a identificar os candidatos que são realmente negros. As legendas que não têm esses núcleos poderiam chamar especialistas de fora."

O presidente do MDB Afro, Nestor Neto, aponta que o processo pode ser baseado em portaria de 2018 que regulamentou a autodeclaração em concursos públicos.

“O ministro [Lewandowski] já deu a regra do jogo. Agora é a gente aguardar a votação, sacramentar e ir pra cima dos partidos para garantir que os critérios que a gente defende sejam adotados e não apenas a autodeclaração, ou vai ser um Deus nos acuda."

Por outro lado, especialistas também consideram a autodeclaração importante por sua dimensão simbólica, como explica a professora Jamile Borges, coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos da UFBA.

“Pela primeira vez, fomos obrigados a nos olhar no espelho. O Brasil sempre teve uma postura negacionista em relação ao racismo, com a difusão da ideia de uma democracia racial. A autodeclaração nos obriga a tomar uma posição."

Ela afirma que, com a implantação de políticas de reparação, as tentativas de fraude são inevitáveis. Mas a transparência e a discussão aberta sobre o tema podem reduzir o número de casos e incentivar os partidos a abrirem espaços de maior protagonismo para candidatos negros.

O avanço da pauta do racismo e de um maior protagonismo de candidaturas negras fez com que, em determinados casos, candidatos que se declararam pardos em eleições passadas se identificassem como brancos na eleição deste ano.

Foi o caso, por exemplo, do candidato a prefeito de Fortaleza, o deputado federal Celio Studart (PV-CE), que tem pele e olhos claros. Ele diz que trocou a cor da pele no registro feito junto à Justiça Eleitoral após uma reavaliação pessoal.

“Na eleição passada, eu havia levado em consideração também a minha composição familiar e descendência miscigenada. Mas refleti melhor sobre esse critério e optei por mudar, levando em conta exclusivamente a minha cor de pele."

O mesmo aconteceu com o deputado federal Heitor Freire (PSL-CE), outro candidato à prefeitura da capital cearense. Ele afirma que tem origem miscigenada, com pai pardo e mãe com raízes indígenas.

Contudo, optou por se declarar branco para evitar possíveis questionamentos. “Foi uma decisão que tomei de maneira muito leve, sem levar em conta nenhuma questão ideológica."

O advogado da ação que resultou na criação da cota financeira para candidaturas negras aprovada pelo TSE, Irapuã Santana, da ONG Educafro, afirma que esse reconhecimento é fruto da ampliação da discussão no país sobre o tema.

“É muito pelo debate racial que a gente tem feito nos últimos anos, que faz as pessoas tomarem consciência e se colocar."

O cofundador da Uneafro Brasil, Douglas Belchior, defende que Supremo e TSE façam um acompanhamento rígido do uso da verba pública, para que ela seja distribuída de forma equânime e diversa.

O movimento negro também estará ativo nesse processo de fiscalização, com a criação de um observatório em parceria com a academia.

“É nosso papel defender a política de reparação que fortalece essas candidaturas e não podemos aceitar argumentos que desqualificam isso. A complexidade da implementação da lei é proporcional ao que a lei enfrenta."

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