Stálin não foi a reencarnação de Lúcifer, diz historiador que influenciou Caetano Veloso

Jones Manoel vê aspectos positivos no regime soviético e prevê nova onda marxista mundial

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São Paulo

Aos 30 anos, o historiador pernambucano Jones Manoel rejeita o rótulo de guru de Caetano Veloso, 78, um dos principais artistas brasileiros.

“Não sou guru de ninguém, nem dos meus sobrinhos. Meu sobrinho torce pelo Santa Cruz e eu sou Náutico”, diz o responsável por, nas palavras do cantor e compositor, torná-lo menos “liberaloide”.

A declaração de Caetano ao programa “Conversa com Bial”, no último dia 5, jogou holofotes sobre Manoel, militante do PCB, youtuber, podcaster e autor de livros sobre marxismo.

O historiador pernambucano Jones Manoel, que vê avanços no regime de Josef Stálin e na União Soviética - Divulgação

Ele também é uma espécie de divulgador no Brasil da obra do italiano Domenico Losurdo (1941-2018), que impressionou o músico pela sua crítica ao liberalismo.

Mas Losurdo, assim como Jones, tem também uma visão que exalta diversos aspectos da União Soviética e relativiza o papel de Josef Stálin (1878-1953), em cujo longo regime teriam morrido até 20 milhões de pessoas, segundo algumas estimativas.

Eles reconhecem seus crimes, mas enxergam diversos avanços do governo do ditador.

Por isso, o pernambucano, nascido numa favela de Jaboatão dos Guararapes, virou alvo de acadêmicos, muitos de esquerda, por estar dando munição para a direita. Dizendo sofrer ameaças na internet, não revela o local onde mora, na periferia de Recife.

Em entrevista à Folha, Manoel rebate as críticas, reafirma os elogios a Stálin e prevê uma nova onda marxista no Brasil, vinda sobretudo da juventude.

*

Você é stalinista? Tem uma tirada do filósofo Slavoj Zizek que acho muito boa. Ele diz que para perguntas erradas não existem respostas certas. A pergunta está mal colocada. Parte-se do pressuposto, amparado no senso comum, de que ser stalinista significa qualquer pessoa que não tem uma visão de Stálin como a reencarnação de Lúcifer na Terra, ou que não coaduna com a leitura da teoria do totalitarismo, que ficou famosa na pena da Hannah Arendt, que equipara nazismo a stalinismo, Stálin a Hitler.

Na verdade, coloca até o stalinismo num patamar ético, moral e de violência maior. Eu não sou stalinista. Stalinismo é uma leitura do marxismo que tem três pilares: desconsiderar qualquer crítica, colocando erros ou até tragédias na conta de mentiras burguesas, ou da CIA; considerar que o modelo da URSS é o único possível e que qualquer coisa fora disso seria revisionismo; e fazer uma leitura do Stálin como uma continuidade direta e uma elevação da obra de Marx, Engels e Lênin. Não me encaixo em nada disso.

Jones Manoel  e Caetano Veloso na União da Juventude Comunista
Jones Manoel e Caetano Veloso na União da Juventude Comunista - Reprodução/Facebook

Na sua opinião, quem foi Stálin? Stálin teve o papel do que na ciência política se chama de pai da nação. Não se pode reduzir a experiência soviética a um mero reino de terror e a um grande gulag. O terror existiu, o gulag existiu, a repressão a artistas, intelectuais, cientistas existiu. Também existiram episódios de fome, não a fome planejada com intuitos genocidas, mas problemas de abastecimento.

Mas o governo de Stálin combateu de maneira firme o racismo e o colonialismo. A URSS também teve papel fundamental na construção de direitos econômicos, sociais, no que depois vai ser generalizado no rótulo de Estado de bem-estar. Nos anos 30, no auge de todo o processo de repressão, estava sendo eliminado o analfabetismo, construída a maior rede vista até então de creches, escolas públicas, restaurantes públicos, universidades, hospitais, empresas, casas populares e por aí vai.

A análise que Losurdo faz, bem longe de qualquer apologia, coloca os dados repressivos, mas destaca que é impossível desconsiderar os elementos emancipatórios. Se hoje eu tenho direito de voto e direitos civis, deve-se fundamentalmente ao papel do movimento comunista.

Enxergar um lado bom no Stálin não é como elogiar Hitler por ter acabado com a hiperinflação na Alemanha, ou o general Médici pelo milagre econômico? Acabar com a hiperinflação não significa melhorar a vida do povo. Isso é discurso de economista tecnocrático. Enxergar um legado emancipatório na experiência soviética fica no mesmo plano de quem defende Barack Obama, que foi o responsável pelo maior uso de drones da história recente dos EUA, que destruiu a Líbia, o país que tinha o maior IDH da África.

Obama foi responsável por mais de 3.000 bombardeios de alvos civis. Ele é um assassino genocida, como todo presidente dos EUA, e mesmo assim é respeitado, considerado um grande estadista. Quando eu digo que o Stálin teve um papel positivo na Segunda Guerra, não significa dizer que o gulag é lindo.

Esse lado positivo do Stálin se sobrepõe aos erros e crimes dele? Na análise histórica, não existe uma balança de pontos positivos e negativos. O objetivo é compreender a totalidade do fenômeno.

Você coloca [Winston] Churchill e [Charles] De Gaulle no mesmo patamar do Stálin? Eu coloco nos seus contextos históricos. A ideia de patamar é muito derivada de ciências exatas. O [Harry] Truman, que ordenou o ataque com as bombas atômicas, produziu o maior massacre no espaço-tempo da história. Nunca se viu tantas pessoas em tão pouco tempo serem exterminadas. Truman não é chamado de assassino, genocida. O Stálin sim, porque era uma figura do movimento comunista.

Chamou minha atenção você dizer que deve o direito de voto ao movimento comunista, sendo que o comunismo não permite eleições livres. Isso é falso. A Constituição soviética foi o primeiro documento constitucional da história que faculta o direito de voto a todos e todas. Quando aconteceu a Revolução Russa, na maioria dos países do mundo existiam restrições censitárias ao voto, critérios de renda, as mulheres estavam excluídas, a população negra. A universalização do direito de voto e a ideia de uma cabeça, um voto, é uma imposição do movimento comunista ao mundo liberal.

Alguém poderia ser candidato na URSS contra Stálin? Mas ninguém pode ser candidato na América Latina com uma plataforma bolivariana, que os EUA derrubam.

Claro que pode. Inclusive o seu partido defende esses modelos e pode concorrer. Porque não tem competitividade eleitoral, por isso está permitido. Se em 2026, eu fosse candidato a presidente e ganhasse, eu tenho certeza que de imediato a burguesia brasileira comandada pela Fiesp, junto com o governo dos EUA e apoio de diversos monopólios de mídia, iam operar para me derrubar e se possível me matar. Aconteceu com [Salvador] Allende, Jango, [Hugo] Chávez, agora com Evo [Morales].

Em 2019, em um artigo no seu blog, você defendeu os fuzilamentos comandados por Che Guevara, dizendo que sem isso Cuba hoje seria pior que o Haiti. Pode explicar? Os EUA são a maior potência militar da história. Têm 800 bases e postos militares pelo mundo. Na América Latina temos histórico de fraude eleitoral, golpes de Estado, assassinatos políticos. O Che Guevara, uma das melhores figuras que já passaram pela história da América Latina, foi, sim, responsável por alguns processos de fuzilamento. Nada comparável que qualquer presidente dos EUA fez. E foram movimentos essencialmente defensivos.

Se os EUA não tivessem financiado, por décadas e décadas, uma ditadura brutal em Cuba, e não tivessem tentado derrubar o governo [de Fidel Castro], esses fuzilamentos não existiriam. Sou um defensor da paz incondicional. Infelizmente, num mundo marcado pelo imperialismo, para defender a paz você tem de estar preparado para se defender da maior máquina de guerra da história.

Isso não torna natural e aceitável demais a violência política? Estamos falando de fuzilamento, paredón. Na verdade, minha argumentação tenta desnaturalizar a violência. Observe quantas vezes na TV se debateu o golpe na Bolívia. Ou a violência que as mineradoras estão perpretando no Peru contra os povos originários. A violência na Colômbia não aparece, o número de sindicalistas, militantes comunistas assassinados. O que eu faço é desnaturalizar essa violência.

Percebo que, sempre que há uma crítica ao comunismo, sua resposta é dizer que a direita fez ainda pior. Isso aí não é cair na falsa equivalência, tão criticada pela esquerda? Minha questão não é justificar nem comparar. Quando aconteceu o atentado às Torres Gêmeas, o governo dos EUA adotou o Ato Patriótico, que restringiu de maneira brutal os direitos civis, institucionalizou a tortura, criou aberrações jurídicas. E ninguém chamou os EUA de ditadura. Aí a Venezuela é ameaçada e usa como justificativa de defesa restrições a certos elementos de liberdade. Lá na hora se usa o adjetivo “não democrático”, e com os EUA não se usa. Quando eu chamo esse exemplo histórico, é para questionar a lógica da aplicabilidade do conceito. Sou um amante da paz, estou até pensando em virar vegano, comecei a ter pena de bicho. Mas sou historiador.

O liberalismo é o grande inimigo a ser enfrentado? Não, o grande mal é a burguesia, o imperialismo. O liberalismo é só uma expressão ideológica.

Você tem sido criticado pela esquerda, porque esse resgate do Stálin daria argumento para a direita de que o socialismo é sempre autoritário. Como responde? Isso não faz sentido à luz da história. [Jacobo] Árbenz, Jango, Allende, todos governos moderados de esquerda, foram derrubados. Todas as vezes que uma força de esquerda propôs a criação do socialismo pela via das instituições, evitando a ruptura, a resposta foi um banho de sangue.

Chegar ao comunismo é possível pela via democrática, ou teria de ser pela revolução? O PCB tem registro eleitoral, disputa eleições. Mas não temos ilusão. O PCB só é legal hoje porque não tem o peso de massas que tinha nos anos 1940 a 1980. Mas no momento que voltar a ter protagonismo, vão dar um jeito de cassar o registro. Se um membro do PCB fosse eleito, não tenho dúvidas de que no dia seguinte começaria a se tramar um golpe. Defendo que a classe trabalhadora deve usar qualquer meio necessário para conseguir seus objetivos.

Como foi seu contato com Caetano? Caetano foi apresentado a mim e à Sabrina Fernandes, que também tem canal no YouTube, pelo [cineasta] Mauro Lima, que leu meu livro Revolução Africana. Ele, como é amigo do Caetano, sabe das preocupações dele com o subdesenvolvimento, a questão racial. Caetano gostou [do livro], e em seguida o pessoal do Mídia Ninja entrou em contato comigo. Como eu estava no Rio, a gente marcou, fui à casa dele, gravamos um vídeo e a gente mantém contato até hoje.

E o que você acha de ter convertido Caetano para algo menos liberaloide, como ele diz? Sou muito grato a Caetano pela projeção. Quando foi publicado o vídeo com ele no Mídia Ninja, meu canal deu um boom de inscritos. Demorei dois anos para chegar a 10 mil inscritos, agora estou com 111 mil, 90 mil foram só esse ano.

Isso mostra novo ímpeto para ideias marxistas e comunistas, que muitos dizem que estavam desacreditadas? Não há dúvidas desse novo impulso. No Brasil, não tanto nesse momento mais imediato, mas várias pesquisas na França, Inglaterra e EUA mostram como a juventude é cada vez mais simpática à palavra socialismo. Até onde vai esse fenômeno, que impacto vai ter na política, quanto vai durar, isso é outra coisa. Essa simpatia se explica por ser geracional. Tenho 30 anos, quando comecei a me entender por gente, a URSS já tinha acabado.

A gente vive num sistema capitalista, democracia liberal, que tem uma série de promessas e não entregou nada. Isso faz com que essa juventude vá procurar alternativas. Não é a Stasi [polícia da Alemanha Oriental] o problema, é a polícia dos EUA, ou do Brasil, que está matando pretos. Esse ano até agosto eu já tinha convite para eventos em 50 cidades. Eu iria fechar o ano com 80 cidades. É uma agenda maior que a de presidente.

Raio-x Jones Manoel

Idade: 30

Formação: graduado em história, com mestrado em serviço social, ambos pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)

Atuação: tem canal no YouTube com 112 mil inscritos e faz o podcast Revolushow; autor de “Revolução Africana”, “Raça, Classe e Revolução” (ambos pela Autonomia Literária) e “História das Experiências Socialistas” (Baioneta), entre outros livros

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