Bolsonaro não se beneficiou de fraude eleitoral em 1994

Tuíte engana ao usar reportagem da época para afirmar que atual presidente participou de esquema para se tornar deputado federal

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São Paulo

É enganoso afirmar que o atual presidente, Jair Bolsonaro (sem partido), participou de fraude em eleições nos anos 1990. A alegação, que viralizou no Twitter nesta semana, apresenta uma notícia da época em que Bolsonaro, então candidato a deputado federal, é citado como um dos favorecidos pelo uso de cédulas falsas.

O tuíte, verificado pelo Comprova, desconsidera que, de acordo com a própria reportagem, Bolsonaro só teria angariado um voto a mais caso a Justiça Eleitoral não tivesse descoberto as irregularidades nas cédulas naquele ano. Nas eleições de 1994, ele foi o terceiro candidato mais votado no Rio de Janeiro. Além disso, a notícia não indica qualquer evidência de que ele tenha participado do episódio.

O presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, encolhe os lábios e parece olhar longe nesta foto em que só ele aparecem de terno escurro e gravata em tom amarelo. O fundo é verde.
O presidente do Brasil, Jair Bolsonaro - Evaristo Sa - 17.nov.2020/AFP

Contudo, a reportagem verificou que a notícia é verdadeira e que as irregularidades citadas no jornal não foram as únicas registradas na ocasião. A eleição chegou a ser anulada e uma segunda votação foi realizada. Em 1996, porém, o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) restabeleceu o resultado do primeiro pleito por entender que a maioria dos votos foi válida.

De acordo com especialistas consultados pela reportagem, as fraudes no período foram facilitadas pelo fato de o voto ser impresso. Os métodos para fraudar eram inúmeros: cédulas depositadas em branco nas urnas pelos eleitores poderiam ser preenchidas irregularmente durante a apuração; lotes inteiros de cédulas não utilizadas poderiam ser extraviadas; e os formulários chamados “boletins de urnas” poderiam ser alterados após a apuração com informações falsas, tidas como autênticas por não haver registro eletrônico. O voto em papel é a tecnologia defendida diversas vezes pelo presidente Bolsonaro, mas, segundo o TSE, as urnas eletrônicas vieram para dar mais segurança e confiabilidade às eleições.

Um voto

Apesar do nome do atual presidente aparecer na reportagem, não é possível afirmar que ele tenha tido envolvimento direto com a ação. Ele é citado apenas em um caso isolado, exatamente o do recorte do Jornal do Brasil mostrado no conteúdo verificado.

Conforme relata o próprio texto, ele poderia ter recebido somente um voto fruto de fraude, elaborado em uma cédula de papel que era mais fina que a oficial. O mesmo aconteceu com Álvaro Valle (PL), Vanessa Felipe (PSDB) e Francisco Silva (PP). As suspeitas mais graves recaíram sobre diversos outros candidatos e candidatas.

Segundo o procurador regional eleitoral aposentado Alcir Molina da Costa, que foi responsável pelo pedido de anulação daquela eleição, a quantidade de cédulas com o nome de Bolsonaro era irrelevante e restrita a uma seção eleitoral. Aliás, o atual presidente teve cerca de 23 mil votos a mais na segunda eleição do que na primeira. Além dele, os outros três candidatos em igual situação também foram eleitos em ambas as votações.

Voto em papel e manipulações

Cientista político da Universidade de Brasília, David Fisher foi categórico ao afirmar que o voto por meio de cédulas de papel “abre muito espaço para manipulação e falsificação”. Como exemplo, ele, que já foi observador da OEA (Organização dos Estados Americanos) em São Paulo, citou experiências que viveu durante as eleições de 1994 em São Paulo, quando foi observador da Organização dos Estados Americanos.

“Era complicado porque tinha que apurar votos para cargos majoritários e proporcionais. Teve uma mesária que foi ao banheiro quatro ou cinco vezes. O juiz desconfiou e mandou uma oficial ir atrás dela. A apuradora havia pego votos em branco sorrateiramente, colocado na calcinha e estava no banheiro preenchendo”, exemplificou.

“Naquela época, nas cidades menores, tinha o fenômeno que o cabo eleitoral guardava o título eleitoral dos eleitores e depois levava o eleitor para votar. Chegava lá, entregava o título e a chamada marmita (envelope com todas as cédulas de papel). Era muito mais produtivo você comprar o cabo eleitoral que os eleitores. O Mário Palmério, que foi um deputado federal de Minas Gerais, publicou um livro chamado ‘Vila dos Confins’ que descreve uma eleição. A maior corrupção que ele já tinha visto”, contou Fisher.

Outro exemplo dado por ele é o de um juiz eleitoral que pediu a opinião dos fiscais para saber como contabilizar os votos. “Fernando Henrique Cardoso não era candidato, deveria ser voto nulo. Mas podia contar como voto partidário ao PSDB. Mesma coisa no caso do Lula e do Brizola: acabou contando como voto de legenda”, contou.

O próprio TSE admitiu que houve “várias denúncias de fraudes antes da adoção da urna eletrônica pela Justiça Eleitoral”. No entanto, o Tribunal não tem um levantamento específico sobre essas ocorrências. “Esclarecemos que todos os votos que comprovadamente decorriam de fraude eram anulados e excluídos da contagem dos votos válidos”, garantiu por e-mail.

O procurador aposentado Alcir Molina conta que a fraude generalizada de 1994 estimulou o TSE a acelerar o processo de adoção do voto eletrônico no país, que passou a ser testado já na eleição seguinte.

Verificação

Em sua terceira fase, o Comprova verifica conteúdos duvidosos que viralizaram na internet, relacionados a políticas do governo federal, à pandemia ou às eleições municipais de 2020. A publicação aqui verificada engana ao usar uma reportagem real para afirmar que o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) já se envolveu em fraude eleitoral.

Até o início da tarde de 26 de novembro, o tuíte em questão já tinha mais 3.300 curtidas, além de 690 retweets e mais de 240 comentários. De acordo com a ferramenta CrowdTangle, o conteúdo poderia ter atingido até 280 mil internautas, apenas no Twitter. A publicação também foi compartilhada no Facebook, mas em menor número.

Enganoso, para o Comprova, é todo conteúdo retirado do contexto original e usado em outro de modo que seu significado sofra alterações; que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.

A investigação desse conteúdo foi feita por UOL, A Gazeta, Poder360, Estdadão e Marco Zero e publicada na sexta-feira (27) pelo Projeto Comprova, coalizão que reúne 28 veículos na checagem de conteúdos sobre coronavírus e políticas públicas. Foi verificada por Folha, GZH, O Povo, Rádio Noroeste, Bereia e Correio.

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