Descrição de chapéu Eleições 2020

Erundina patinou para entregar feitos que Boulos promete e encerrou mandato mais rejeitada que aprovada

Prefeita petista teve propostas travadas por ter minoria na Câmara, mas contas em ordem, Anhembi e vinda da F-1 são vistos como pontos fortes

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São Paulo

Quando Guilherme Boulos (PSOL) é questionado sobre a inexperiência na gestão pública e apresenta sua candidata a vice, Luiza Erundina (PSOL), como credencial, não é apenas retórica. De fato, seu programa de governo pretende reeditar a gestão da ex-petista na Prefeitura de São Paulo, de 1989 a 1992.

O problema é que, na época, Erundina conduziu um mandato turbulento e deixou a prefeitura aprovada por 29% dos moradores da capital, segundo o Datafolha. Seu índice de rejeição era de 38%, enquanto 33% consideravam seu mandato regular.

Seu candidato à sucessão, Eduardo Suplicy (PT), perdeu para Paulo Maluf (então no PDS) na eleição de 1992.

A atual deputada federal tentou se eleger para a prefeitura outras quatro vezes (1996, 2000, 2004 e 2016), mas não obteve sucesso.

Na cadeira de prefeita, com minoria na Câmara Municipal, viu suas principais propostas —como o IPTU progressivo e a tarifa zero no transporte— serem travadas.

Enfrentou greves e protestos com depredação, desentendeu-se com o próprio partido. Sofreu oposição do establishment político e jurídico, travou embates com o governo federal, teve contas reprovadas e o mandato, ameaçado.

Luiza Erundina, então no PT, durante a cerimônia de posse como prefeita da cidade de São Paulo - Claudio Freitas - 1º.jan.1989/Folhapress

A experiência de sair da oposição, com seu discurso inflamado e ora agressivo, para governar pela primeira vez uma grande cidade, o que exige negociação, pode ser para o PSOL de Boulos uma situação comparával à vivida pelo PT de Erundina naquele tempo.

Se eleito, Boulos também terá minoria na Câmara –são 14 eleitos de PT e PSOL, num total de 55. Os outros partidos que o apoiam no segundo turno não elegeram vereadores.

Assim como a candidata a vice em sua gestão, ele rechaça a ideia de lotear a prefeitura para obter apoio parlamentar. O candidato diz que vai aprovar seus projetos por meio de pressão e participação popular.

A própria Erundina, porém, em seu último ano de gestão, reconheceu que essa ideia é falha.

“A gente constatou que nem sempre aquilo que propõe como oposição é viável no governo. […] Na relação com o Legislativo, imaginávamos que, mesmo sendo minoria, conseguiríamos alterar as decisões dos vereadores a partir da pressão popular, e isso não é tão garantido”, disse ao jornal O Estado de S. Paulo em 1992.

Em 1990, a Câmara barrou uma proposta de aumento do IPTU para bancar a gratuidade do transporte público a partir de 1991. O Orçamento aprovado pelos vereadores (de 125%, e não de 577% no reajuste do imposto) inviabilizou a arrecadação pretendida por ela.

Os partidos de esquerda somavam 19 de 53 cadeiras. Manifestações de rua e apoio público de personalidades, porém, dobraram os vereadores em outro episódio, o da análise das contas da gestão pelo Tribunal de Contas do Município (TCM) em 1990. O parecer que reprovava as finanças acabou rejeitado pelos vereadores por 41 a 9.

Ao falar sobre essa época, Erundina afirma ter sido vítima de perseguição e preconceito por ser uma prefeita mulher, de esquerda, solteira e nordestina. Além da oposição na Câmara, diz, outras instituições, como o TCM, o governo federal, a imprensa e a Justiça lhe impuseram obstáculos.

Ela chegou a ser alvo de 33 ações judiciais em 1992, ano eleitoral. Um ato com 200 mulheres na prefeitura foi realizado em sua defesa.

Guilherme Boulos (PSOL) faz campanha com a vice, Luiza Erundina (PSOL), que aos 85 anos usa um carro adaptado para se proteger da Covid-19 - Marlene Bergamo - 21.nov.2020/Folhapress

Para o jornalista Chico Malfitani, que cuidou da comunicação da campanha de Erundina em 1988, foi secretário da gestão dela nessa área e hoje é marqueteiro de Boulos, ela "foi a melhor prefeita de São Paulo", mesmo com toda a dificuldade.

"Sem ter maioria na Câmara, sem fazer trocas, sem ceder às empreiteiras, sem recuar um milímetro na questão ética, ela conseguiu fazer um governo que construiu muita coisa, casas populares, seis hospitais, trouxe a Fórmula 1", afirma.

"O governo dela foi um exemplo de como governar sem ceder aos centrões da vida e à política pragmática de toma lá, dá cá", completa.

A maior polêmica dela na gestão foi a proposta do IPTU progressivo, que derrubou sua aprovação em meados de 1992. A ideia de cobrar mais de comércio, indústria e terrenos vazios sofreu rejeição popular e acabou derrubada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo.

Erundina recorreu ao STF (Supremo Tribunal Federal), que manteve a liminar. Somente em julgamento de 2010, o Supremo passou a admitir a constitucionalidade do IPTU progressivo para leis feitas após 2000.

O baque na arrecadação, de cerca de US$ 400 milhões em valores da época, obrigou a suspensão de obras de pavimentação, construção de escolas e hospitais e canalização de córregos.

A gestão de Erundina e o programa de Boulos têm ainda outros pontos de contato, desde a busca de receitas em cobrança mais incisiva da dívida ativa até o uso exaustivo da expressão “inversão de prioridades” e a defesa de maior participação popular nas decisões.

Segundo a equipe de Erundina à época, ela terminou o mandato investindo em média 48% na área social. Sua gestão tem marcas fortes na periferia, como os mutirões de habitação, a implantação de sacolões, a ampliação da rede de creches e hospitais e a merenda reforçada.

Por outro lado, interrompeu obras viárias como os túneis sob o rio Pinheiros e o parque Ibirapuera. Ela preferiu usar os recursos em questões que considerava mais urgentes.

A inauguração do sambódromo do Anhembi, a reforma no autódromo de Interlagos para a realização da Fórmula 1 e a entrega do governo com as contas públicas em ordem são tidos como pontos fortes de sua passagem pela prefeitura.

Assim como Boulos, Erundina era vista como uma militante radical de esquerda, ligada a movimentos sociais e a assentamentos de sem-teto. Ela própria, em entrevista na década de 1990, afirmou que tinha imagem de “subversiva, agitadora, que estimula invasão de terra, que faz greve por fazer”.

Se Boulos hoje adota um discurso de moderação, comparado ao "Lula paz e amor" que pavimentou a vitória do ex-presidente em 2002, a Folha registrava, na edição do último dia do mandato de Erundina, em 31 de dezembro de 1992, uma transformação dela após a passagem pela prefeitura.

“A vereadora que participava da organização dos movimentos de invasão de terra tem agora uma visão mais moderada", dizia a reportagem, que continha esta declaração da então prefeita: "O poder temperou a radicalidade e minha própria estrutura pessoal".

Após enfrentar uma greve de motoristas e cobradores, Erundina deixou o governo com ressalvas a esse tipo de protesto, dizendo que eles tinham que ser revistos, embora fossem um direito constitucional.

Em maio de 1990, ela acabou com a greve de dois dias no transporte público concedendo aumento menor do que o reivindicado e após demitir membros do movimento.

“Os direitos dos motoristas e cobradores vão até onde há um choque com os direitos do resto da população. […] O patrimônio público não vai ser destruído”, disse na época.

O transporte foi ainda alvo de outras manifestações. Em fevereiro de 1990, foram cinco dias seguidos de depredações de ônibus.

Antes disso, em 1989, Erundina defendeu a greve geral contra o governo do presidente José Sarney (PMDB). Pelo uso de verba pública para bancar anúncios de jornal a respeito da mobilização, ela foi condenada, em 2008, a ressarcir os cofres municipais em R$ 353 mil.

Sem patrimônio, a deputada chegou a ter seu apartamento e carro penhorados. Um jantar de arrecadação com políticos e aliados foi a solução para levantar a verba. Hoje adversário na disputa eleitoral, o prefeito Bruno Covas (PSDB), à época deputado estadual, foi um dos organizadores do evento.

Erundina teve reveses ainda com líderes e dirigentes do PT. Nas prévias da campanha de 1988, a direção do PT apoiava outro nome, o de Plínio de Arruda Sampaio, mas ela saiu vencedora.

No início da gestão, desentendimentos com o partido, por exemplo a respeito de aumentar a tarifa de ônibus, resultaram na criação de um conselho político com as instâncias nacional, estadual e municipal da sigla.

Na campanha de 1992, Erundina passou a acusar o PT de ignorar suas realizações e priorizar o debate nacional, que se impunha com o impeachment de Fernando Collor. Para ela, o partido não entendeu o significado de ter ganhado a Prefeitura de São Paulo.

Malfitani afirma que a guerra interna no PT que desaguou na campanha de Suplicy —da qual ele também foi marqueteiro— teve início na candidatura de Erundina de 1988.

"Ela não era a candidatura preferida da direção do partido. Havia uma resistência a ela", relata.

Com a campanha de Suplicy, os atritos se acirraram. Malfitani deixou o posto de marqueteiro depois de se desentender com a cúpula petista.

O jornalista rebate a crítica que circulou na época, de que ele escondia a gestão de Erundina da propaganda, e justifica que sua intenção era destacar a honestidade da então prefeita e de Suplicy.

Erundina venceu em 1988 com 29,9%, à frente de Maluf, que teve 24,4%. Sua eleição foi inesperada, ocorrida num contexto de grave crise econômica e deu esperança para a esquerda, representando um teste desse campo no poder. A mesma situação de Boulos, caso supere o favoritismo de Covas.

Para Malfitani, comparações entre o que foi o governo da ex-petista e sobre o que pode ser uma gestão Boulos, caso ele se eleja, precisam ser feitas com cautela, pois há diferenças.

"Ele tem ao lado dele a Erundina. Ela já passou por tudo isso, já sabe o caminho das pedras. A Luiza vai dar rumos, conselhos. Talvez, num primeiro momento, ele vai ter dificuldades, como todo governo tem. Mas vai superá-las."

Sobre a imagem negativa que tanto ele quanto Erundina dizem ter relação com a cobertura crítica da mídia, Malfitani considera que Boulos tende a sofrer menos, já que hoje as redes sociais, inexistentes à época, têm peso no debate público.

"Vai ser uma batalha, não há dúvida. Mas governar São Paulo sempre é."​


Aprovação dos prefeitos de SP no fim do mandato

Nível de ótimo/bom, segundo Datafolha

  • Bruno Covas (nov.2020) - 43%
  • Fernando Haddad (2016) - 14%
  • Gilberto Kassab (2012) - 24%
  • Gilberto Kassab (2008) - 56%
  • Marta Suplicy (2004) - 49%
  • Celso Pitta (2000) - 4%
  • Paulo Maluf (1996) - 57%
  • Luiza Erundina (1992) - 29%
  • Jânio Quadros (1988) - 30%

Alguns dos secretários de Luiza Erundina

Educação
Paulo Freire (depois Mário Sérgio Cortella)

Cultura
Marilena Chauí

Negócios Jurídicos
Hélio Bicudo (depois Dalmo Dallari)

Saúde
Eduardo Jorge

Transportes
Tereza Lajolo

Serviços e Obras
Lúcio Gregori

Negócios Extraordinários
Luiz Eduardo Greenhalgh

Planejamento
Paul Singer

Administrações Regionais
Aldaíza Sposati

Governo
José Eduardo Cardozo

Administração
Fermino Fecchio

Finanças
Amir Khair

Comunicação
Perseu Abramo

Pontos fortes da gestão Erundina

  • Mutirões de habitação, com 35 mil novas casas e terrenos para mais 55 mil
  • Alfabetização de 18.500 jovens e adultos
  • Fórmula 1 em Interlagos
  • Inauguração do sambódromo do Anhembi
  • Melhora na merenda escolar
  • Implantação de 33 sacolões
  • Construção de seis hospitais
  • Contas públicas em ordem

Pontos fracos da gestão Erundina

  • Base de apoio formada por minoria na Câmara Municipal
  • IPTU progressivo barrado na Justiça
  • Veto da Câmara à tarifa zero de transporte
  • Não liberação de verbas pelo governo federal
  • Greves e protestos no transporte público
  • Crises com o PT
  • Reprovação das contas pelo Tribunal de Contas do Município
  • Não elegeu um sucessor do PT
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