A fala do comandante do Exército Brasileiro, general Edson Leal Pujol, exortando os militares a não fazerem parte da política e a não deixá-la contaminar os quartéis, marca uma nova fase na relação entre os fardados e o governo Jair Bolsonaro.
Não se trata de uma ruptura, mas uma sinalização que antes só era feita internamente acerca do desconforto de membros do Alto-Comando do Exército e das outras Forças com a amálgama que se criou entre o serviço ativo e o governo.
Como diz um brigadeiro, membro da Força mais cética da presença ostensiva no governo desde a campanha de 2018, o problema todo foi criado pelos próprios militares ao embarcar na canoa bolsonarista.
A cúpula do Exército à época da corrida presidencial, encabeçada pelo general Eduardo Villas Bôas, passou o ano alarmada com teorias acerca do que poderia acontecer se o PT voltasse ao poder. Os mais paranoicos previam caos nas ruas.
O famoso tuíte no qual o então comandante pressionou o Supremo Tribunal Federal a não conceder habeas corpus ao então preso Luiz Inácio Lula da Silva, foi o ápice dessa movimentação.
A candidatura de Bolsonaro, cercada por antigos membros do Alto-Comando do Exército, recebeu o beneplácito tácito da ativa, que não tem voto, mas viu uma legião de fardados com estrelas nos ombros migrar para a governo federal.
Um almirante, membro da Força que acabou se unindo ao arranjo de forma mais orgânica, defendia no ano passado o movimento, dizendo que era ajudar um novo governo sem quadros prontos ou ver mais desordem no país. Neste novembro de 2020, ele tem dúvidas se foi a melhor opção.
Daí que ele e outros militares ouvidos nesta sexta (13) apontam a fala de Pujol na noite de quinta como um divisor de águas. Ele basicamente repetiu o que dissera Villas Bôas à Folha dois anos antes, mas um rio de narrativa passado por baixo da ponte desde então.
O resumo é conhecido. Militares do governo passaram 2019 sendo humilhados pela ala ideológica, deram a volta por cima no começo de 2020 e se viram expostos quando o chefe deles aderiu a uma agenda explicitamente golpista no temor de perder a cadeira com a crise tríplice do primeiro semestre.
Em vários momentos, os militares no governo ou apoiaram Bolsonaro, ou se viram contrangidos a isso.
Salvo pelo centrão e pelas sombras judiciais que rondam sua família, Bolsonaro aquiesceu um pouco e acomodou-se a um arranjo mais convencional de governo. A ala militar, que são várias e odeia ser chamada por esse nome, se viu momentaneamente fora do palco.
Cabe lembrar que, com o capitão reformado do Exército no poder, os militares se deram bem. São 9 de 23 ministros, 2.900 cargos ocupados por membros da ativa no governo, projetos relativamente intocados e uma reforma previdenciária e de carreira aprovada.
Tudo isso atrai atenção, e as estripulias antidemocráticas do comandante-em-chefe, apoiadas em alguns momentos pela ala militar desgostosa com outros Poderes, traziam holofotes. A normalização relativa, dado que falamos de Bolsonaro, foi vista com alívio tanto na ativa quanto na ala militar.
Entre aqueles ainda com quepe, o grande problema de imagem é Eduardo Pazuello, general da ativa que é ministro da Saúde e, sempre que possível, desautorizado por Bolsonaro. Mas, de forma geral, o serviço ativo tocou sua vida.
Nos dois últimos meses, acumularam-se estranhamentos entre o núcleo ideológico do bolsonarismo e os fardados de terno. O alvo mais recorrente é o general Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo), vistou como ineficaz pelos ditos ideológicos.
Amigo mais longevo do presidente, o general usualmente dá de ombros, mas a coisa complicou quando ele foi chamado de Maria Fofoca pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, o queridinho da turma radical.
A animosidade cresceu com a entrada do vice-presidente, o general Hamilton Mourão, no embate acerca das políticas para a Amazônia que ele conduz. Ele e Salles se odeiam.
A isso se seguiu uma nova rodada de divergências públicas entre o vice, indemissível no lamento de presidente, e Bolsonaro. Ela tanto chegou ao paroxismo que a ala militar pediu calma ao general, como a Folha mostrou.
Mourão nunca foi unanimidade entre a cúpula da ativa, da qual foi membro. Mas é visto nela como o esteio constitucional do arranjo de poder, no que tange aos fardados: teve os mesmos votos que o chefe, afinal.
A frase de Bolsonaro sobre o uso da pólvora, na qual ameaçou supostas intenções intervencionistas do americano Joe Biden na Amazônia, acendeu um sinal de alerta extra.
Mesmo para os padrões usuais de hipérbole e ignorância diplomática de Bolsonaro, ela foi vista como abusiva. Os termos com que alguns generais trataram o episódio seria passível de processo disciplinar, embora ninguém possa dizer que não sabia com quem tratava em 2018.
Aí veio a riscada de faca no chão de Pujol, um silencioso contumaz. Até um dos mais bolsonarista dos antigos membros do Alto Comando do Exército se manifestou a colegas nesta sexta apoiando o general.
Mourão, tentando delimitar sua avaliação à parte mais óbvia da fala de Pujol, reforçou a ideia de que a política não pode entrar nos quartéis.
O vice será o teste de estresse da assertiva do comandante. Ele até afirmou que pessoal da ativa não deveria participar do governo —Pazuello e o homem da Marinha no Planalto, almirante Flávio Rocha, estão nessa condição.
O comandante do Exército defendeu que militar só fale de assuntos militares. Nesta sexta, participou com os outros dois comandantes e com seu chefe, o general Fernando Azevedo (Defesa), de um seminário em que esses temas foram tratados com transparência inaudita para grande público.
Enquanto o esforço técnico se desenrolava, Mourão dava mais uma cutucada em Bolsonaro, assumindo a obviedade de que Biden será o novo presidente americano, e não o ídolo do chefe, Donald Trump.
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