Descrição de chapéu Eleições 2020

Violência política atinge mulheres para limitar participação, diz pesquisadora

Democracias com sub-representação feminina são falhas e com limites, afirma Flávia Biroli

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Porto Alegre

A violência política contra mulheres é uma reação para limitar a participação feminina da política, afirma a cientista política Flávia Biroli, 45, professora da UnB (Universidade de Brasília), em entrevista concedida antes da eleição deste domingo (15).

“A violência pode ser simbólica, física, sexual, econômica e psicológica. A noção de violência política apareceu justamente nos países em que a participação das mulheres aumentou”, diz a autora dos livros "Gênero e Desigualdades: Limites da Democracia no Brasil e "Gênero, Neoconservadorismo e Democracia" —este com Maria das Dores Campos Machado e Juan Vaggione.

Segundo Biroli, os avanços femininos com as cotas eleitorais têm gerado reações conservadoras de grupos que buscam naturalizar as diferenças históricas dos papéis delegados às mulheres na esfera privada —no lar, com a família— e aos homens na esfera pública —livres das responsabilidades domésticas.

“Democracias que permanecem masculinas são falhas e com limites porque não representam todos e excluem um grupo majoritário da população e do eleitorado”, diz.

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Na obra “Feminismo e Política” a senhora reflete sobre a ideia de público e privado, na questão feminista. Como esses conceitos afetam a política e a participação feminina?

A distinção entre público e privado está na base da crítica feminista. Historicamente existe uma conexão de mulheres com a esfera privada e de homens com a esfera pública. Isso é tanto simbólico, quanto prático.

Simbólico, por exemplo, mostrando mulheres com tendência à maternidade e homens com disposição agressiva para disputas na esfera pública. Na prática, a gente precisa olhar para a divisão sexual do trabalho. A política é um espaço público por excelência, que foi atribuído aos homens como parte do que seria o trabalho característico masculino nessa divisão.

Aos homens foi permitido circular em espaços de poder e se limitou o acesso a mulheres, associando-as ao mundo doméstico, liberando os homens dessas responsabilidades. Em um mundo assim construído, homens detêm os recursos políticos, dirigem os partidos e controlam os recursos.

A compreensão de que um controle majoritariamente masculino na política é um problema é suficientemente difundida?

Nunca houve tanta discussão sobre a sub-representação das mulheres na política como há neste momento. Significa que os movimentos das mulheres conseguiram politizar essa exclusão e apresentá-la como um problema de caráter público e um problema para as democracias.

Foi preciso quebrar a ideia de que a barreira para as mulheres era a falta de capacidade e vontade de participar. Democracias que permanecem masculinas são falhas e com limites porque não representam todos e excluem um grupo majoritário da população e do eleitorado.

Ao mesmo tempo em que há maior reconhecimento de que é um problema político, por outro lado, há uma nova forte reação conservadora, que procura naturalizar essas diferenças de público e privado.

O que é o neoconservadorismo e como ele está relacionado à pauta de igualdade de gênero?

Um dos nossos esforços foi entender o que é novo na reação conservadora. O conservadorismo não emergiu nos nossos dias. O conceito de neoconservadorismo permite sistematizar o que é específico.

Observamos que é uma reação às conquistas e demandas das últimas três décadas, como as cotas para mulheres. Outro aspecto são ações coordenadas, transacionais. Na América Latina, o neoconservadorismo é marcado por uma aliança de grupos evangélicos e católicos.

É só olhar para o Congresso ou para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. A ministra Damares Alves é uma advogada evangélica. Mas a Secretaria da Família é comandada por uma católica, Angela Gandra.

Temos visto uma atuação conjunta desses grupos no Judiciário. Procuram definir a agenda das mulheres como ideológica, se colocando na posição de quem fala em nome da natureza. Outra característica é o neoliberalismo, que restringe orçamento para políticas de assistência e direitos trabalhistas. Assim, mulheres são reposicionadas no papel de cuidadoras responsáveis por aquilo que o Estado se esquiva.

Mesmo com as cotas, o que falta para as mulheres efetivamente participarem da vida política e serem eleitas?

Não temos indícios de que o problema está no eleitorado, que se recusaria a votar em mulheres. Não há nenhuma pesquisa empírica de que há mulheres ou homens que se recusam a votar em mulheres.

O problema também não está na vontade das mulheres em participar. Elas são cerca de 46% das pessoas filiadas a partidos, segundo dados do TSE [Tribunal Superior Eleitoral]. As mulheres atuam em sindicatos, movimentos sociais e comunidades. O dado sobre filiação mostra que buscam a política partidária.

O problema é na roda que gira nos partidos, reproduzindo o domínio masculino. A vida partidária é fundamental. As redes dos partidos, o apoio, os recursos são fundamentais. O que a gente tem dito é que os partidos funcionam como "gatekeepers", os guardiões dos portões.

Como a senhora avalia a implementação das cotas?

A lei existe desde 1997, mas foi aprovada com uma série de falhas. A primeira tem relação com os sistema eleitoral. A lei dizia que tinha que haver reserva, não preenchimento. É uma lista aberta, diferentemente da Argentina, onde a lista é fechada e garante um terço de mulheres eleitas porque o eleitor vota na lista.

A primeira vez que a gente chega perto de preencher os 30% foi em 2014, quando teve 29,3%. Só em 2018 que tivemos mais de 30%. Em 2009, a lei vai dizer que em vez de apenas reservar para mulheres, precisa preencher. Foi a partir daí que aumentou a pressão sobre os partidos.

Em 2018, uma decisão do STF [Supremo Tribunal Federal] e uma resolução do TSE definiram que ao menos 30% dos recursos e tempo de TV e rádio deveriam ser para mulheres. Passamos a ver, então, os escândalos, como o dos laranjas, porque passou a envolver dinheiro.

Na própria eleição de 2018, passou de 10% para 15% de deputadas eleitas, ainda é pouco, mas é um efeito. Estas eleições municipais são as primeiras com esta regra. Os partidos precisam cumprir, e as autoridades eleitorais, fiscalizar e punir.

A senhora observa um aumento de candidatas a vice-prefeitas. Por quê?

Nossa lei de cotas se aplica a cargos proporcionais, no âmbito municipal para vereador. Mas a resolução sobre financiamento, de 2018, permite que se dirija os recursos para mulheres que concorrem a cargos executivos.

Minha hipótese é que aumentou mais o percentual de candidatas a vice-prefeitas porque os partidos puderam entregar os recursos para cabeças de chapa, que são os homens na sua maioria. O recurso que deveria fortalecer as mulheres acaba com os homens. Em 2016, 17,6% das candidaturas a vice eram de mulheres. Em 2020, são 21,1%. Mas para prefeita não aumentou.

Como a senhora avalia a violência de gênero na política?

A violência política atinge as mulheres como forma de limitar sua participação ou ampliar o custo para participarem da vida política. A violência pode ser simbólica, física, sexual, econômica e psicológica. A noção de violência política apareceu justamente nos países em que a participação das mulheres aumentou.

Na Bolívia, a legislação tornou a política paritária. Ocorreram sequestros das mulheres eleitas para que renunciassem e, assim, assumissem seus suplentes. No Brasil, chega ao extremo, como no caso do assassianto da Marielle Franco.

A violência simbólica e psicológica são formas de procurar desautorizar as mulheres, associando-as a comportamentos pouco aceitáveis, dizendo que não merecem respeito. Seja pela moral sexual ou como cuidam dos filhos. Isso tem acontecido com a Manuela D'Ávila (PC do B), candidata à prefeita de Porto Alegre. Já em 2018, quando era candidata a vice-presidente, procurou-se associá-la falsamente ao uso de drogas e a uma aparência desviante do padrão.

Por que a pauta das mulheres é mais comum no campo da esquerda do que na direita? Não deveria ser suprapartidária?

Existe uma relação forte entre esquerda e agendas de justiça social. A direita liberal ou neoliberal opera com a noção de meritocracia, que carrega o entendimento de que ninguém está impedindo as mulheres, que só precisariam concorrer com mais capacidade. Ignoram que existem estruturas e dinâmicas históricas que tornam mais difíceis para mulheres disputarem espaço.

Em uma direita liberal, a divisão sexual do trabalho não faz sentido: “A mulher que arranje outro jeito, ninguém impôs que tivesse filhos ou cuidasse dos pais idosos”.

A noção de mérito obscurece as camadas de desigualdades e dinâmicas de trabalho, sobretudo no racismo. As mulheres negras são as que encontram maiores dificuldades, elas exercem trabalho doméstico dentro e fora de casa. Do centro para a esquerda, a gente vê a agenda de justiça social sendo mobilizada de maneira mais forte. Isso não significa que a direita não esteja candidatando mulheres.

RAIO-X

Flávia Biroli, 45
Cientista política e professora na UnB (Universidade de Brasília), presidente da Associação Brasileira de Ciência Política (2018-2020) e integrante do Observatório das Eleições do INTC (Instituto da Democracia e da Democratização da Comunicação). Integrou o grupo de especialistas da CSW (Comission on the Status of Women), da ONU, que promove a igualdade de gênero

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