Descrição de chapéu Folhajus

Investigações de assassinatos no campo no 1º ano de Bolsonaro empacam; só 1 caso é considerado encerrado

Dados integram levantamento da ONG Repórter Brasil, que aponta que 87% das vítimas eram moradores da Amazônia Legal

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Daniel Camargos
Repórter Brasil

As 31 vítimas da violência no campo no Brasil no primeiro ano do governo do presidente Jair Bolsonaro têm nome, sobrenome e famílias agora desamparadas. O que elas não têm é justiça.

Passado mais de um ano, ninguém foi condenado e apenas um crime foi considerado encerrado: o de um indígena no Amapá que, segundo o Ministério Público Federal, morreu afogado —versão que a família contesta, já que ele tinha lesões no corpo.

Outras 19 investigações (61%) ainda não foram concluídas e uma está com o Ministério Público.

Dez dos crimes (32%) tiveram a fase de inquérito policial concluída, mas aguardam julgamento, sendo que seis tratam do mesmo episódio, a Chacina de Baião, no Pará.

Em apenas sete dos crimes, houve prisão preventiva de suspeitos até 20 de janeiro, em sua maioria fazendeiros e seus seguranças, mas em quatro dos casos eles foram soltos.

Os dados fazem parte de levantamento feito pela Repórter Brasil, com base em relatório da Comissão Pastoral da Terra (CPT), e reunidos no especial multimídia Cova Medida.

Com o nome inspirado na obra de João Cabral de Melo Neto —que Chico Buarque musicou em "Funeral de um Lavrador"— o especial faz um raio-x inédito da violência e da impunidade no campo.

“A impunidade é um arranjo estrutural no qual as vítimas da violência mantêm sua condição histórica de invisibilidade, mesmo quando eliminadas”, analisa Paulo César Moreira, coordenador da CPT.

A invisibilidade citada por Moreira tem relação com o perfil das vítimas. Os assassinados em 2019 eram majoritariamente moradores de estados da Amazônia Legal (87%), ligados a movimentos sem-terra (35%) ou indígenas (25%). Entre eles, há ainda um servidor da Funai (Fundação Nacional do Índio).

A maioria dos casos envolve disputa por terra (39%) ou defesa de territórios indígenas (29%), mas há episódios motivados por questões trabalhistas e crime de ódio, como o atropelamento de um idoso durante uma manifestação do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) em Valinhos (SP).

Entre os investigados e acusados, há fazendeiros, seguranças contratados por proprietários rurais, madeireiros e grileiros. E há casos que mostram a precariedade das polícias, como um assassinato no Amazonas que não teve nem boletim de ocorrência, e outro, em Mato Grosso, onde a delegacia sequer tinha delegado.

O tempo previsto no Código Penal para um inquérito policial é de 30 dias —prazo raramente cumprido no caso de homicídios.

“Pesquisas sobre homicídio mostram que, quando os casos são esclarecidos, isso ocorre, em sua maioria, dentro de um ano. Com o passar dos meses, as chances [de resolução] caem porque o tempo apaga vestígios, diminui a pressão nas autoridades e as testemunhas esquecem detalhes”, afirma o advogado e gerente do Instituto Sou da Paz, Bruno Langeani.

A impunidade repete-se tanto em crimes recentes quanto nos antigos: dos 1.496 casos de violência no campo entre 1985 e 2018, apenas 8% foram julgados, segundo a CPT.

A Repórter Brasil também investigou cinco assassinatos ocorridos há mais de uma década para entender se o fator tempo colabora com a justiça: em só um deles houve julgamento, condenação e prisão.
Enquanto a justiça não vem, familiares encaram o luto às vezes sob ameaças e dificuldades financeiras.

"A gente não tem paz. É uma injustiça terrível. Vai ficar por isso mesmo? Eu fiquei com meus filhos, numa luta", afirma Elizangela Santos, viúva de Aluciano Ferreira dos Santos, assassinado no interior de Pernambuco em junho de 2019. Ela hoje conta com ajuda da Igreja para alimentar seus três filhos pequenos.

“O que faz que essas pessoas pratiquem crimes é a quase certeza da impunidade”, afirma a ex-ministra do Meio Ambiente Marina Silva. Mas não só. Para ela, o discurso e medidas adotadas por Bolsonaro, como a redução da fiscalização ambiental, agravam a violência.

“Os assassinos estão sentindo que têm licença para matar. Escutam o discurso do governo contra indígenas, ambientalistas, extrativistas e se sentem acolhidos, enquanto as vítimas estão desprotegidas.”

O número de conflitos no campo aumentou 23% entre 2018 e 2019, segundo a CPT —é o recorde dos últimos cinco anos.

Com 12 das 31 vítimas, o estado campeão de mortos foi o Pará, que já foi palco de vários massacres, como Eldorado dos Carajás e Pau D’Arco, e do assassinato de Dorothy Stang, em 2005. Assim como muitas das vítimas de 2019, a missionária lutava por democratizar o acesso à terra.

“A desigualdade da distribuição da terra no Brasil é uma das mais acentuadas do mundo, sendo associada a processos históricos de grilagem, conflitos e impactos ambientais”, concluiu um estudo do instituto Imaflora ao constatar que 10% das maiores fazendas ocupam 73% da área agrícola do país.

Uma das medidas para reduzir a desigualdade, continua o estudo, é a reforma agráriasuspensa em 2019 por Bolsonaro.

Para o economista João Pedro Stedile, um dos coordenadores do MST, há um padrão de décadas na crueldade contra os trabalhadores do campo, baseado no elitismo e no preconceito. “Essa violência está nas perseguições do Judiciário, na atuação da polícia e culmina com os assassinatos.”

Procurada, a Secretaria de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura não quis se pronunciar.

Depois dos sem-terra, os indígenas foram as principais vítimas da brutalidade no campo. Em 2019, foram nove assassinados, sendo sete lideranças —o maior número dos últimos 11 anos, segundo a CPT.

“Os invasores se sentiram autorizados a serem violentos”, afirma Sônia Guajajara, coordenadora-executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).

Para ela, o ponto alto da violência atual contra os indígenas teve início quando Bolsonaro declarou que não iria demarcar nem um centímetro de terra indígena —o que de fato vem acontecendo.

Procurada, a Funai não comentou.

Entre os indígenas assassinados em 2019, o caso que teve repercussão internacional foi o de Paulino Guajajara, que integrava os Guardiões da Floresta, grupo formado para proteger o território de invasores.

“O mundo todo soube da morte do meu filho e os criminosos ficaram com raiva de mim. Sofro ameaças, mas não tenho medo. Só sinto muita falta dele”, afirma o pai de Paulino, José Maria Guajajara.

Os dois madeireiros indiciados pelo assassinato tiveram prisão preventiva decretada, mas continuam soltos. Depois da morte de Paulino, outros quatro indígenas foram assassinados na mesma região. "Punir os responsáveis tem sido uma luta inglória", lamenta Moreira, da CPT.

Leia o especial completo em www.reporterbrasil.org.br/covamedida

Colaboraram Mariana Della Barba, Diego Junqueira, Daniela Penha, Gisele Lobato, Maria Fernanda Ribeiro, Joana Suarez e Pedro Sibahi

A missionária americana Dorothy Stang, assassinada no Pará em fevereiro de 2005
A missionária americana Dorothy Stang, assassinada no Pará em fevereiro de 2005 - Carlos Silva - 12.fev.2004/Reuters
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