Descrição de chapéu Entrevista da 2ª

Pandemia deixou óbvio que vivemos em um país desgovernado, diz Frei Betto

Em novo livro, frade dominicano e escritor faz reflexões sobre Covid-19, memória e política

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Belo Horizonte

Os meses de pandemia do novo coronavírus no Brasil têm sido de isolamento para Frei Betto, 76. Dividindo-se entre o convento dominicano, em São Paulo, e um sítio, entre palestras virtuais e a escrita, ele conta que sai apenas esporadicamente para ir a consultas médicas de rotina.

As reflexões sobre os primeiros três meses deste período foram reunidas recentemente em “Diário de Quarentena – 90 dias em Fragmentos Evocativos”, publicado pela editora Rocco.

Este é o mais recente da lista de 69 livros assinados pelo frade dominicano, reunião de ensaios, artigos, registros de notícias sobre o avanço da Covid-19, poemas, memórias da ditadura e de pessoas próximas, como frei Tito, amigo que foi torturado pelo regime.

“Colocar no papel ou computador ideias e sentimentos é profundamente terapêutico”, diz ele, em um dos trechos, onde sugere escrever um diário entre as dicas de como enfrentar a reclusão forçada, lembrando os dias em que foi mantido em solitárias nos Dops (Departamento de Ordem Político Social) de Porto Alegre e de São Paulo.

Apenas no estado de São Paulo, ele conta que ainda foi mantido no quartel-general da Polícia Militar, no Batalhão da Rota, na Penitenciária do Estado, no Carandiru e na Penitenciária de Presidente Venceslau.

A lista de dicas é endereçada a um homem, casado há mais de 20 anos, hipertenso, e que resiste a ficar em casa, para angústia da mulher. Os dois aparecem em entradas variadas pelo diário, e ele acaba contraindo o vírus no decorrer do primeiro mês de uma quarentena que ainda teria muito tempo pela frente.

Homem de camisa rosa e óculos com jardim ao fundo
Frei Betto, frade dominicano e escritor, que lançou o livro 'Diário de Quarentena: 90 Dias em Fragmentos Evocativos' - Karime Xavier/Folhapress

Ao pedido de entrevista da Folha, Frei Betto preferiu que a conversa fosse por email, pelo qual respondeu sobre a pandemia e questões políticas do cenário nacional, como as eleições municipais e o governo de Jair Bolsonaro (sem partido), a quem chama de BolsoNero, em referência ao imperador de Roma.

Frei Betto, que foi assessor especial da Presidência da República em 2003 e 2004, no governo Lula, diz no "Diário" que a mineirice o preservou de ambições políticas e que o maior erro da esquerda foi o abandono do trabalho de base.

“Lembre-se de que jamais fui militante de qualquer partido político. A meu respeito correm duas lendas sem respaldo na verdade e na realidade: a de que sou sacerdote (sou apenas um religioso leigo) e militante partidário”, ressaltou ele durante a correspondência virtual com a reportagem.

*

O seu livro mais recente, de um total de 69 publicados, traz textos que o senhor escreveu num período de três meses de quarentena. O senhor acha que alguma lição foi tirada da pandemia? Ficou óbvio que vivemos num país desgovernado, cujos quase 200 mil mortos pela pandemia foram vítimas de um presidente que sofre de tanatomania.

O Brasil voltou a registrar mais de mil mortos em um único dia em decorrência do novo coronavírus. Como estamos encarando essas mortes? Parece que a nossa população sofre também de isolamento psicológico. Esse genocídio, causado pelo descaso do governo, bem como as tragédias de Mariana e Brumadinho, deveriam suscitar grandes mobilizações populares, como ocorreu nos casos George Floyd e, aqui, João Alberto. Perdemos a empatia. O sofrimento do outro não dói em nós. Mas devemos guardar o pessimismo para dias melhores.

O senhor se considera otimista, então, hoje? Tudo que os demolidores, como BolsoNero, querem é que percamos o ânimo e fiquemos à mercê de seus arroubos autoritários. Quando constato que, numa cidade conservadora como São Paulo, Guilherme Boulos passou para o segundo turno e teve mais de 2 milhões de votos, a esperança renasce. O bolsonarismo foi o grande derrotado nessas eleições municipais, como será varrido do mapa em 2022.

Em entrevista recente ao jornal argentino Página 12, o senhor disse que as eleições deste ano seriam um termômetro interessante para avaliar o olhar do população. Pela primeira vez desde 1985, o PT ficou sem governo nas capitais. Qual a leitura o senhor faz desse resultado? Enquanto os partidos progressistas não tiverem consenso em torno de um Projeto Brasil, continuarão sem condições de produzir uma alternativa de poder. E precisam retomar o trabalho de base popular. A cabeça pensa onde os pés pisam. ​

Qual foi o erro que levou a esse resultado em 2020? Em 2018, a direita soube manipular muito bem, em especial pelas redes digitais, o antipetismo alimentado pelas tramoias da Lava Jato que fomentaram uma narrativa moralista capaz de induzir muitos a esquecerem os avanços, sobretudo na área social, dos 13 anos de governo do PT. Já em 2020 PT, PSOL e PC do B deveriam ter feito mais alianças. Agora, é hora de retomar o trabalho de base popular e definir estratégias na guerra digital.

O que o PT precisa fazer para reverter isso em 2022? E como o senhor vê a figura do ex-presidente Lula nesse contexto? Lula é o mais importante líder popular do Brasil. Tem o papel fundamental de articular esse Projeto Brasil criando, agora, um fórum de partidos e movimentos sociais progressistas.

Lula deveria articular esse projeto em torno de si ou com um novo nome? Quem o senhor vê hoje como sucessor dele? Para 2022 a oposição, se lograr unidade, conta com ótimos candidatos: Lula, Boulos e Flávio Dino são três exemplos. Considero Lula um ótimo candidato a presidente em 2022 [o ex-presidente, porém, hoje está barrado pela Lei da Ficha Limpa]. Quanto ao Projeto Brasil, deverá resultar da articulação entre os partidos progressistas e os movimentos sociais.

Em 2021, o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT) completa cinco anos. O senhor chegou a dizer que Lula devia estar arrependido por não ter sido ele o candidato em 2014. Continua pensando assim? Sim, Lula deveria ter sido candidato em 2014. Com o patrimônio de dois mandatos presidenciais e 87% de aprovação, o PT não teria que, de novo, começar do zero. Dilma foi bem no primeiro mandato, mas perdeu o rumo no segundo.

Quais lições ficaram destes últimos cinco anos? Fora do povão não há salvação. O afastamento dos partidos progressistas das periferias, favelas e zonas rurais pobres, o refluxo das comunidades eclesiais de base, devido aos pontificados conservadores de João Paulo 2º e Bento 16, abriram espaço, no universo dos marginalizados e excluídos, ao fundamentalismo religioso que alavancou a eleição de BolsoNero.

Temos que fortalecer os movimentos sociais e começar a sinalizar que é uma falácia candidaturas de centro à Presidência da República.

Todos que, agora, se fantasiam de centro são, na verdade, convictos defensores das pautas políticas e econômicas da direita, como a prevalência da apropriação privada da riqueza sobre os direitos coletivos e o 'direito' de as empresas brasileiras sonegarem mais de R$ 400 bilhões por ano. Nenhum deles aprovará uma reforma tributária progressiva, que afete a fortuna dos mais ricos e favoreça os mais pobres.

Bolsonaro sempre tentou se aproximar do voto cristão, de católicos e evangélicos. Como um religioso, o que o senhor acha dessa postura? Ele usa e abusa do nome de Deus em vão. Um presidente que libera armas, que matam, e trava vacinas, que salvam vidas, se compara àqueles que Jesus qualificou de 'sepulcros caiados'.

Em um discurso deste ano na ONU, ele falou sobre "combate à cristofobia". Existe cristofobia no Brasil? Só na cabeça dele, que ainda procura assustar o povo com o fantasma do comunismo, mantém um ministro que passa a boiada por cima de todos os princípios de preservação ambiental e um outro que isola o Brasil, agora órfão da tutela da Casa Branca.

O senhor viveu a repressão da ditadura militar e teve pessoas próximas mortas pelo regime. Como encarou a eleição de Bolsonaro? Como uma tragédia consentida pelo Judiciário, pois como apologista da tortura, da ditadura, do racismo, da misoginia e do golpismo, deveria ter sido impedido de se candidatar.

No último texto que publicou nesta Folha, em outubro deste ano, o senhor critica a decisão judicial que proibia o uso de "católicas" no nome do grupo Católicas pelo Direito de Decidir. O senhor também publicou aqui uma carta de uma neocristã que fez um aborto. Qual a posição do senhor sobre o tema? Aprovo o sistema francês, no qual tudo se faz para evitá-lo mas, em última instância, a decisão é da mulher. Já propus a várias jovens que, surpreendidas com uma gravidez inesperada, vieram ao convento com seu drama de consciência: tenham o filho e tragam aqui que eu crio. Nenhuma, que eu saiba, abortou. E ganhei um monte de afilhados...

O senhor também fez parte do Fome Zero. Como vê a questão do enfrentamento à fome hoje? Um dos escândalos da atualidade é o fato de a Covid-19 já ter matado quase 1,7 milhão de pessoas no mundo, o que provoca fantástica mobilização em busca da erradicação do vírus, enquanto a fome mata cerca de 24 mil pessoas por dia, 9 milhões por ano, e quase ninguém se mobiliza. Por quê? Porque a fome faz distinção de classe, a Covid não.

O Brasil saiu do mapa da fome em 2014 e, agora, corre o risco de retornar. Segundo a Oxfam, 5,2 milhões de pessoas passam fome no Brasil, sem contar os que não ingerem os nutrientes essenciais, como proteínas e vitaminas.

A fome é o retrato mais cruel da desigualdade social no Brasil. E, apesar disso, o governo Bolsonaro erradicou o Consea [Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional] e mantém total indiferença à questão da segurança alimentar, embora o nosso país seja considerado 'celeiro do mundo'.

RAIO-X

Frei Betto, 76
Frade dominicano e escritor, nasceu em Belo Horizonte. Preso duas vezes durante a ditadura militar, foi assessor especial da Presidência da República no governo Lula, de 2003 a 2004, e coordenador de Mobilização Social do Programa Fome Zero. Tem 69 livros publicados. É assessor de movimentos sociais e da FAO/ONU para questões de soberania alimentar e educação nutricional

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