Descrição de chapéu STF

Ministros-chaves para anular quebra de sigilo de Flávio Bolsonaro já adotaram posição diferente sobre tema

Três magistrados do STJ aceitaram no passado decisões com fundamentações sucintas semelhantes à emitida contra o senador

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Rio de Janeiro

Três dos quatro ministros da Quinta Turma do STJ (Superior Tribunal de Justiça) que votaram a favor da anulação da quebra dos sigilos bancário e fiscal do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) adotaram posição diferente em julgamentos anteriores sobre o mesmo tema.

Reynaldo da Fonseca, Joel Paciornik e Ribeiro Dantas já referendaram decisões de juízes que fundamentaram suas posições expressando apenas concordância com os argumentos do Ministério Público.

Na última terça-feira (23), a Quinta Turma do STJ anulou a decisão que quebrou os sigilos bancário e fiscal de Flávio Bolsonaro e de outros investigados. Por 4 a 1, a maioria entendeu que Flávio Itabaiana, juiz de primeira instância, não detalhou a necessidade da medida.

Uma das decisões mantidas por esses ministros anteriormente trata de situação idêntica à do filho do presidente Jair Bolsonaro: quebra de sigilos bancário e fiscal numa investigação de "rachadinha" com um despacho sucinto.

A revogação da quebra de sigilo deve levar o caso de Flávio à estaca zero, anulando outras provas colhidas que não podem ser apreendidas de novo, como celulares e comprovantes bancários.

A turma do STJ vai analisar na próxima terça-feira (2) outros recursos da defesa do senador que põem em risco quase toda a apuração.

Flávio é acusado de liderar um esquema de “rachadinha” em seu antigo gabinete na Assembleia Legislativa, levado a cabo por meio de 12 funcionários fantasmas entre 2007 e 2018, período em que exerceu o mandato de deputado estadual.

Flávio foi denunciado em novembro de 2020 pela Promotoria fluminense sob a acusação dos crimes de peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa. Ele nega as acusações.

No STJ, a decisão do juiz Flávio Itabaiana, da 27ª Vara Criminal, contra o senador foi anulada porque os ministros consideraram que ela não teve fundamentação suficiente.

Nela, o magistrado de primeira instância afirma apenas que "analisando os argumentos expendidos pelo Parquet [Ministério Público] na petição inicial e examinando os anexos constantes da mídia digital, verifica-se que o afastamento dos sigilos bancário e fiscal é importante para a instrução do procedimento".

A decisão de Itabaiana, de abril de 2019, foi mantida pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, por entender que o magistrado adotou uma técnica jurídica chamada "per relationem", na qual fundamenta sua decisão remetendo a outra peça dos autos.

Os quatro ministros que defenderam a anulação consideraram ilegal a ausência de qualquer análise própria sobre os argumentos do MP-RJ.

"O magistrado não se deu ao trabalho de encampar ou adotar de forma expressa as razões do pedido do Parquet. Apenas analisou os argumentos, examinou os anexos, concluindo que a medida era importante", afirmou o ministro João Otávio de Noronha.

É o voto de Reynaldo da Fonseca que indica um marco temporal da mudança de entendimento da corte sobre o tema. Ao apresentar suas justificativas, ele fez referência a um julgamento em 28 de agosto de 2019 no qual a 3ª Seção do STJ exigiu alguma fundamentação própria em decisões judiciais.

“A partir desse precedente, passamos, pelo menos eu passei, a examinar a técnica 'per relationem' como uma técnica válida desde que use argumentos próprios, ou faça a relação do fato com a peça que está sendo adotada”, disse ele.

No caso a que ele faz referência, os ministros confirmaram a anulação feita pelo STJ em 2016 de um acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo porque, ao manter uma sentença condenatória por roubo, os desembargadores apenas transcreveram a decisão de primeira instância sem abordar os argumentos da apelação do réu.

É, de fato, possível encontrar no STJ outras decisões semelhantes à tomada na terça em anos anteriores. Mas pesquisa feita pela Folha no site do STJ mostra que Fonseca, Dantas e Paciornik apresentaram outro entendimento em julgamentos ao menos até o primeiro semestre de 2019.

Um deles versa sobre a quebra de sigilo de um ex-deputado estadual e alguns assessores numa investigação sobre "rachadinha" na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul.

A decisão de primeira instância que quebrou o sigilo dos investigados se limitou a mencionar "a necessidade impreterível da realização da diligência, pois como adiantou o solicitante, a medida aqui requerida consiste no único instrumento investigatório para o bom prosseguimento dos trabalhos de apuração".

Neste caso, o relator era Paciornik. Em seu voto, de dezembro de 2018, ele afirmou que "não se pode confundir fundamentação concisa com a sua ausência".

"Vale destacar, ainda, que é pacífico neste Superior Tribunal de Justiça orientação jurisprudencial segunda a qual é válida a utilização da fundamentação per relationem como razões de decidir.", escreveu o ministro.

O voto foi referendado por unanimidade na Quinta Turma, da qual já faziam parte os três ministros.

Eles também mantiveram, em maio de 2019, uma decisão do juízo de Execução Penal de Araçatuba de uma linha na qual indeferiu o pedido de recálculo de pena de um preso “com fundamento na manifestação clara do MP”.

Os mesmos ministros também aceitaram, em dezembro de 2018, uma decisão judicial manuscrita na petição do próprio MP-RJ em que pede busca e apreensão em endereços ligados a suspeitos de desvio de recursos da Apae de Barueri.

“Defiro, ante os argumentos apresentados e parecer do MP, servindo a presente de mandado”, escreveu o juiz de primeira instância de próprio punho no documento da Promotoria.

Em sua exposição na terça, Fonseca apresentou outros julgamentos com resultados semelhantes, todos decididos em 2020.

Um deles é de relatoria de Paciornik, de setembro de 2020. No acórdão, o ministro já apresenta uma posição mais rígida sobre a técnica “per relationem”.

“A mera transcrição de manifestação nos autos, sem qualquer acréscimo de argumentos próprios, não é apta a suprir a exigência de fundamentação das decisões judiciais”, escreveu, ao anular uma decisão de bloqueio de bens.

O entendimento mais rígido foi seguido por Ribeiro Dantas, Fonseca e também Noronha, que também integrava a turma. O ministro Félix Fischer, que no caso de Flávio Bolsonaro votou pela manutenção da quebra de sigilo, também concordou com a anulação de bloqueio de bens neste caso.

Noronha, que proferiu o quarto voto no caso de Flávio, relatou apenas um julgamento no qual a técnica é debatida. O caso, porém, não tem semelhanças com o de Itabaiana.

Ribeiro Dantas, ao fundamentar seu voto no processo do senador, também disse que a lei anticrime, sancionada em 2019, deixou expressa a necessidade de fundamentação própria.

“Agora, com a lei anticrime, que deu uma nova redação ao art. 395 [do Código Processo Penal], diz que, se o magistrado invoca motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão, se não enfrentou todos os argumentos, e se limitou a invocar precedente ou enunciado de súmula, não se considera fundamentada”, afirmou ele.

O ministro provavelmente se referiu à nova redação do artigo 315 do Código Processo Penal, e não o 395, que trata de outro tema. Contudo, o dispositivo trata apenas de decisões que tratam de pedido prisão preventiva, e não quebra de sigilo como no caso de Flávio.

O professor de direito penal da UFRJ Salo de Carvalho afirmou que é aceitável a mudança de posição de magistrados em órgãos colegiados como fruto do debate sobre determinado tema.

“O que chama a atenção é a mudança de toda uma turma. Isso é mais difícil”, disse Carvalho, coordenador do Grupo de Pesquisa em Ciências Criminais da UFRJ.

Carvalho afirmou concordar com a decisão do caso do filho do presidente, por considerar a fundamentação da decisão uma exigência constitucional.

“A questão é por que algumas relativizações de princípios jurídicos feitos à clientela tradicional [na área criminal] não se repetem à elite política e econômica do país?”, disse Carvalho.

Levantamento do grupo apontou que a Quinta Turma aceitou o uso da técnica “per relationem” em 26 dos 29 julgamentos realizados desde janeiro de 2020. O número, porém, também inclui decisões que se remetem a despachos anteriores do mesmo magistrado, e não apenas aos fundamentos do MP-RJ, como no caso de Flávio.

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