A complexidade em torno da prisão do deputado Daniel Silveira expõe as vísceras de nossa crise democrática e suas ambiguidades.
O Supremo Tribunal Federal tem tomado as medidas que considera cabíveis para sobreviver aos ataques que têm sido desferidos por um setor antidemocrático e autoritário da política brasileira.
Em tempos de normalidade institucional, já seria difícil para o STF dar conta dessa tarefa, impondo os limites constitucionais sobre esses agentes.
Decisões como a que impediu o Ministério da Justiça de produzir um dossiê de controle ideológico sobre funcionários do governo e possíveis adversários seriam corajosas e duras em qualquer situação.
Em um contexto em que a autonomia das demais instituições de investigação e controle tem sido dilapidada, essa tarefa se tornou ainda mais difícil.
Em alguns casos, o Supremo optou por tomar algumas decisões heterodoxas e controvertidas para lutar essa batalha. Dentre elas a abertura do chamado inquérito das fake news e a decretação da prisão de ofício do deputado Silveira.
Essas soluções problemáticas parecem indicar que o STF não enxerga outras ferramentas para lidar com um grupo de agentes que utiliza os mecanismos legais para subverter a ordem democrática e implantar um regime autoritário.
Governos populistas autocráticos minam a força de instituições independentes para poder implantar suas agendas sem a necessidade de negociar, de considerar interesses de outros grupos ou de se adequar a limites legais.
São governos que promovem a proteção dos aliados e a destruição dos opositores, são intolerantes à pluralidade.
Não é coincidência que ao longo dos últimos dois anos os órgãos de investigação e controle, como Ministério Público Federal, Polícia Federal, Receita Federal e de instrumentos de controle como o Coaf, tenham sofrido severas ingerências de ordem orçamentária e administrativa.
A principal instituição de controle que tem sido capaz de resistir a esse processo tem sido o Supremo Tribunal Federal. Após um período de razoável inércia em 2019, passou a exercer um controle mais robusto a partir da eclosão da pandemia da Covid-19, em 2020.
É evidente que nesse contexto de extremo desgaste, e de efetivo risco de deterioração democrática, as decisões do STF podem ter equívocos.
A decisão que decreta a prisão do deputado imbricado com movimentos antidemocráticos, não traça com clareza os parâmetros pelos quais determinadas falas não estão cobertas pela imunidade parlamentar e que tipo de fala configura de fato uma incitação à violência.
Também não deixa de ser irônico que, sob o pretexto de coibir a apologia ao AI-5 e ao retorno da ditadura militar, o STF tenha precisado recorrer à Lei de Segurança Nacional —uma norma oriunda do período ditatorial, criada para sufocar a oposição ao regime.
Endossar a força desse tipo de norma é preocupante porque pode gerar maus precedentes.
É preciso ter em mente que, dentro de poucos anos, a composição do Supremo será bastante modificada.
A depender de quem venha a realizar as indicações de novos ministros, as preocupações democráticas do tribunal podem ser mitigadas. Essa nova composição poderá se mostrar disposta a utilizar esses poderes extraordinários de controle contra deputados de oposição ou de qualquer orientação desconfortável.
Caso o STF se mantenha no processo de aumentar o seu poder, sem traçar com clareza os limites para o seu exercício, a solução de curto prazo poderá criar problemas democráticos no futuro.
O contexto é especialmente difícil para o STF. O general que ocupava a função de comandante do Exército Brasileiro admitiu que ameaçou os ministros do Supremo com o possível fechamento do tribunal, para que em 2018 o tribunal não tomasse uma decisão que lhe desagradava —e que o fez em colaboração da alta cúpula da Força.
O presidente da República expressou sua vontade de intervir no Supremo no ano passado por se incomodar com o fato de ser investigado.
Há uma articulação robusta de ataques virtuais e presenciais visando enfraquecer a legitimidade do tribunal. Esse contexto exige do Supremo uma superação.
Se o Supremo Tribunal Federal pretende vencer essa árdua batalha, precisa forçar a dimensão técnica de sua legitimidade. É preciso que as decisões heterodoxas sejam excepcionais, que as intervenções na mídia sejam escassas e que os conflitos internos sejam mitigados.
Os ministros precisam deixar de lado o individualismo radical e as tentativas de decidir de acordo com as consequências que serão alcançadas. É preciso que os limites sejam mais claramente decorrentes da Constituição do que da vontade dos ministros.
O Supremo Tribunal Federal precisa ouvir os críticos que desejam o aprimoramento da instituição, para que estejam protegidos dos que querem destrui-la.
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