Entenda a divulgação das mensagens da Lava Jato e como elas podem ser usadas na Justiça

Diálogos, acessados por defesa de Lula, foram citados em julgamento sobre suspeição de Moro em turma do Supremo

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São Paulo

Quase dois anos após a revelação pelo site The Intercept Brasil de conversas que mostraram colaboração entre o então juiz Sergio Moro e a equipe da Lava Jato, os diálogos de procuradores no aplicativo Telegram voltaram a causar repercussão no meio político nas últimas semanas.

A defesa do ex-presidente Lula teve acesso com ordem judicial ao conteúdo hackeado de celulares de autoridades e tem trazido a público trechos de diálogos que reforçam seus questionamentos feitos à Justiça.

No julgamento sobre a atuação de Moro à frente de um dos casos do ex-presidente, finalizado nesta terça (23) no STF (Supremo Tribunal Federal), as mensagens foram mencionadas por dois ministros e motivaram um debate intenso entre Gilmar Mendes e o novato da corte, Kassio Nunes Marques.

Por 3 votos a 2, a Segunda Turma do Supremo atendeu ao pedido da defesa de Lula e considerou parcial a atuação de Moro no caso do tríplex de Guarujá (SP).

Como as mensagens foram usadas na sessão do Supremo que considerou que Lula foi julgado de modo parcial por Moro? Em votos proferidos há duas semanas, os ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski mencionaram vários trechos das conversas para exemplificar a proximidade entre Moro e procuradores.

Como o Supremo ainda não analisou a validade do uso desse conteúdo como prova, Lewandowski afirmou que as citações eram apenas "reforço argumentativo". Disse também que não há nenhum indício de que elas tenham sido manipuladas pelos hackers.

Gilmar afirmou que a parcialidade de Moro era constátavel a partir dos fatos narrados pela defesa, independentemente das discussões sobre provas potencialmente ilícitas. Mas leu diversas sequências de diálogos.

Último a votar, nesta terça-feira, Kassio Nunes Marques criticou o uso desse material pela Justiça e disse que isso poderia abrir um precedente perigoso. "Se o hackeamento fosse tolerado como meio para obtenção de provas, ainda que para defender-se, ninguém mais estaria seguro de sua intimidade."

Gilmar respondeu o colega rispidamente e disse: "Eu trouxe isso aqui [as mensagens] para demonstrar o barbarismo em que incorremos." Também reafirmou que seu voto se calcou nos elementos nos autos.

O pedido de suspeição de Moro se baseava nas mensagens dos procuradores? Não. O pedido de habeas corpus havia sido feito em 2018, antes do hackeamento, que ocorreu no ano seguinte. Após as primeiras reportagens publicadas pelo site The Intercept Brasil com base nos diálogos, em junho de 2019, a defesa de Lula chegou a protocolar uma petição anexando o conteúdo dessas conversas no procedimento no Supremo.

Neste ano, porém, os advogados disseram que já havia provas suficientes de que Moro havia atuado de maneira parcial e descartaram acrescentar nos autos arquivos do Telegram recém-obtidos.

Por que mais mensagens têm sido divulgadas nas últimas semanas? Os novos trechos de diálogos divulgados vieram a público em decorrência de decisão do Supremo que autorizou a defesa de Lula a acessar o material eletrônico apreendido com hackers que invadiram os celulares de autoridades em 2019.

As conversas publicadas agora são partes selecionadas pela defesa e incluídas em petições ao Supremo. Nelas, os advogados tentam comprovar que houve medidas indevidas e perseguição em processos da Lava Jato em Curitiba.

O ministro Lewandowski, que autorizou o acesso aos advogados de Lula, também permitiu que esses relatórios da defesa fiquem sem sigilo.

Esses novos trechos já mostraram, por exemplo, uma discussão do procurador Deltan Dallagnol sobre o risco de "dar falsidade" em termo de depoimento registrado pela Polícia Federal "como se tivesse ouvido o cara, com escrivão e tudo, quando não ouviu nada".

Também apontam que os procuradores elaboraram uma planilha de assuntos e decisões prioritárias para eles que seria enviada à juíza Gabriela Hardt, que substituiu Moro à frente da operação.

Os arquivos analisados pela defesa do ex-presidente são os mesmos abordados em reportagens do Intercept e de outros veículos de imprensa? Assim como as reportagens, os relatórios dos advogados até agora trazem diálogos que envolviam o procurador Deltan no Telegram e chats de procuradores.

A defesa de Lula, no entanto, tem acesso a um conteúdo muito mais amplo do que aquele que foi objeto das reportagens.

Segundo o Intercept Brasil, que recebeu de fonte anônima o material com as mensagens em 2019 e primeiro publicou as reportagens com os diálogos, o arquivo obtido à época tinha 43,8 gigabytes.

O acervo apreendido na operação contra os hackers, batizada de Spoofing, é muito maior, de 7 terabytes (cada terabyte corresponde a 1.024 gigabytes).

Por que Lewandowski foi o responsável por autorizar o acesso? Ricardo Lewandowski relatava uma reclamação (tipo de recurso encaminhado ao Supremo) na qual a defesa de Lula buscava obter o acesso à íntegra do conteúdo do acordo de colaboração da Odebrecht, usado como prova em uma das ações penais contra ele.

Dentro desse procedimento, os advogados resolveram pedir diretamente ao ministro o acesso também ao material apreendido com os hackers na Operação Spoofing, em 2019, para averiguar sua tese de que houve negociação irregular com autoridades estrangeiras. Lewandowski disse em dezembro ver verossimilhança na alegação e aceitou abrir os arquivos hackeados aos advogados.

Em janeiro, a defesa conseguiu extrair o material.

A Procuradoria-Geral da República e os procuradores da Lava Jato questionam a participação no caso Telegram de Lewandowski, ministro de votos historicamente contrários à Lava Jato. Dizem que outro ministro, Edson Fachin, já estava tratando do assunto em outro procedimento. A Procuradoria chegou a falar em burla de relatoria por parte de Lula.

O que diz o Ministério Público a respeito do acesso? Em julgamento dia 9 de fevereiro, a subprocuradora-geral Cláudia Sampaio Marques disse que a decisão de Lewandowski a respeito, no ano passado, foi "absolutamente desfundamentada" e não levou em conta que o material envolvia a atividade criminosa dos hackers.

Na ocasião, outros três ministros, além de Lewandowski, confirmaram o direito de Lula de acessar o material.

"O senhor ex-presidente da República tem hoje em suas mãos um farto material de pessoas que não dizem respeito a ele, não dizem respeito à Lava Jato", disse a subprocuradora.

Qual a perspectiva para o uso das mensagens como prova na Justiça a partir de agora? O Supremo até agora não validou a utilização das mensagens como prova.

O relator da Lava Jato na corte, Edson Fachin, enviou ao plenário da corte em novembro passado um outro pedido do ex-presidente Lula a respeito do assunto. Em despacho naquele caso, Fachin disse que seria necessário o plenário da corte analisar a licitude dos dados apreendidos na Operação Spoofing. Esse julgamento ainda não ocorreu.

Existe uma discussão jurídica sobre em quais situações excepcionais um material de origem ilícita pode ser utilizado como prova. Uma das teses é a de que um conteúdo com esse tipo de origem pode até servir para absolver um acusado, mas não para acusar um suspeito.

Como o Superior Tribunal de Justiça usará as mensagens? Em fevereiro, o presidente do Superior Tribunal de Justiça, Humberto Martins, instaurou, com base nas mensagens, inquérito para apurar uma tentativa de integrantes da Lava Jato de investigar de maneira ilegal ministros da corte.

Os procuradores já chegaram até a mencionar a Lei de Abuso de Autoridade, criticada por eles à época de sua sanção, em 2019, para contestar o uso das mensagens na Justiça.

Deltan Dallagnol já afirmou que as mensagens são de origem criminosa, o que as tornam uma prova ilícita e sem autenticidade. Para ele, o uso de provas desse tipo "chega a ser caracterizado como crime pela Lei de Abuso de Autoridade".

Em documento nesta semana, Martins argumentou que o aproveitamento dos arquivos nesse caso serve para a "autodefesa" do Poder Judiciário, diante de indícios de excessos do Ministério Público.

Outras defesas terão acesso a essas mensagens da mesma maneira? Até agora, Lewandowski não atendeu aos pedidos de extensão do benefício feitos por outros réus da Lava Jato, como o ex-governador Sérgio Cabral e o almirante Othon Luiz Pinheiro da Silva.

No caso de Cabral e do almirante, o ministro respondeu que esse pedidos não "guardam similitude" com as alegações feitas pela defesa do ex-presidente.

Houve perícia nas mensagens? Na época da apreensão do material com os hackers, foi elaborado um laudo pericial pela Polícia Federal.

Porém, segundo a Procuradoria-Geral da República e os procuradores da Lava Jato, esses documentos contêm apenas registros do que foi apreendido com os suspeitos presos. Isso serve para provar que o material não foi mexido a partir do momento em que houve as buscas.

O que dizem os procuradores da Lava Jato sobre a autencidade do conteúdo? A defesa dos procuradores diz que os registros da PF são insuficientes para atestar a autenticidade das mensagens. Afirma que não há como se certificar se o que foi apreendido foi efetivamente digitado pelos usuários do aplicativo.

Ao longo de dezenas de reportagens produzidas após a revelação do material pelo Intercept, não foi encontrado nenhum indício de que as mensagens tenham sido adulteradas ou editadas.

A defesa de Lula diz que o conteúdo dos diálogos é íntegro e que já teve seu conteúdo confirmado por "procuradores, peritos, apresentadores de TV que foram referidos nos diálogos, além de diversos jornalistas".

O que aconteceu com os hackers? Presos em julho de 2019, com a deflagração da Operação Spoofing, os hackers Walter Delgatti Neto e Thiago Eliezer foram soltos no ano passado por ordem da Justiça Federal do DF.

Os dois, segundo denúncia apresentada pelo Ministério Público Federal, eram os mentores e líderes do grupo. Outros quatro acusados também viraram réus.

Em fevereiro, o Ministério Público chegou a pedir nova prisão de Delgatti por entender que houve violação de medidas impostas na época da soltura, como a proibição ao uso de internet. Citou, por exemplo, que ele concedeu entrevista via canal de YouTube.

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