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Lava Jato vive 'guerra de narrativas', e avanços causaram reações, diz relator da operação na 2ª instância

Em entrevista, juiz João Pedro Gebran Neto afirma ver retrocesso no combate à corrupção no país

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São Paulo

Relator dos casos da Lava Jato na segunda instância, o juiz João Pedro Gebran Neto, do TRF-4 (Tribunal Regional Federal da 4ª Região), diz que a Lava Jato sofre atualmente com uma "guerra de narrativas" promovida por quem foi atingido por seus efeitos.

Em uma rara entrevista, já que ele não costuma se pronunciar fora dos julgamentos e dos autos, o magistrado disse à Folha que hoje se busca em "um fato posterior uma nulidade antecedente".

A declaração é uma referência a questionamentos feitos à condução dos casos pelo então juiz Sergio Moro, de quem se diz amigo, após ele ter virado ministro do governo Jair Bolsonaro.

João Pedro Gebran Neto, relator da Lava Jato no Tribunal Regional Federal da 4ª Região, sediado em Porto Alegre - Sylvio Sirangelo - 27.nov.2019/TRF-4

Gebran Neto compara a situação da Lava Jato com a Operação Mãos Limpas, que abalou o sistema político italiano nos anos 1990 e acabou motivando uma contra-ofensiva no Legislativo. Diz ver retrocesso no combate à corrupção no país e questiona mudanças no Ministério Público.

O juiz conversou com a reportagem instantes após a decisão do Supremo Tribunal Federal que nesta terça-feira (23) classificou Moro parcial na condução do processo do tríplex de Guarujá, no qual o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi condenado.

Ao revisar essa sentença, em 2018, o relator à época votou por confirmá-la e por aumentar a pena —e foi acompanhado pelos colegas. A decisão fez com que Lula fosse preso e impedido de disputar a eleição presidencial de 2018.

Questionado sobre a rapidez do processo à época, ele afirma que o TRF-4 é célere como um todo e que ele não julga "o ser humano, nem as histórias das pessoas, mas as condutas e as provas".

Com o fim da prisão de condenados em segunda instância, o peso que as decisões do TRF tinham acabou reduzido ou diluído. Antes, o tribunal decidia se haveria prisão ou não. Agora isso é decidido em outras instâncias. Como vê isso? Quando acaba a prisão em segundo grau, significa dizer que jogamos essa questão para o trânsito em julgado [momento em que se esgotam os recursos], para um futuro incerto e com certeza distante.

Ambos os tribunais [STF e STJ, Superior Tribunal de Justiça] são bastante assoberbados, recebem um fluxo de recursos bastante elevados, o que faz com que os julgamentos possam se prorrogar por mais 5, 10, 15, 20 anos.

Isso não tem nada a ver com Operação Lava Jato, tem a ver com o Estado brasileiro, com o Estado que a sociedade quer. Nós queremos uma jurisdição penal efetiva ou achamos que é preciso esgotar quatro graus?

Seria uma má sinalização à sociedade? Não tenho dúvida disso. Há um estudo famoso de um prêmio Nobel de economia, Gary Becker, que [diz que] a sociedade funciona por incentivos, estímulos e desestímulos. Na medida que não se tem eficácia da jurisdição penal, acaba tendo um estímulo à impunidade.

Ninguém teme a pena no Brasil, é o fato. Porque ela pode não ocorrer ou vai ocorrer em um futuro bastante distante ou incerto. Ou se ocorrer, as penas no Brasil são cumpridas a um sexto do que foi fixado.

No Brasil, o sistema penal é duplamente perverso. Para a sociedade, porque não é efetivo, é demorado. E é perverso para o réu porque o sistema carcerário hoje é absolutamente desumano, superlotado. Nesse aspecto, andamos muito mal.

Qual legado a Lava Jato vai deixar? A operação vai deixar primeiro um legado de esperança para o Brasil. Que o Brasil pode ter jeito, pode combater a corrupção, algumas de suas mazelas. Que há pessoas dispostas a fazer a coisa certa, a aplicar lei, a investigar.

Todas as pessoas que foram processadas e julgadas tiveram direito ao devido processo legal, a todos os graus recursais. A sociedade, inclusive, demonstrou um amplo apoio à operação. Com isso, não quero dizer que não pode ter havido algum erro. Mas esses erros são mínimos.

E qual o impacto de modificações que estão acontecendo nas forças-tarefas do Ministério Público, que foram dissolvidas neste ano, e na Polícia Federal? Eu imaginava e imagino que essas modificações têm que ser para melhorar. Infelizmente não verifiquei essas mudanças do ponto de vista positivo. Porque o que eu verifico hoje é mais um enfraquecimento das estruturas de combate à criminalidade.

Por mais bem intencionadas que possam ser essas reformulações, essa reestrutura, aos olhos dos processos e da sociedade, o que eu verifico hoje foi um retardamento na tramitação dos processos e das próprias investigações. Temos mais de 80 fases já deflagradas, e o ritmo de denúncias e de processos acabou diminuindo, visto a olho nu.

Nos últimos anos, a Lava Jato passou a ser alvo de duras críticas, não só de advogados que se dizem cerceados, mas também de políticos, como o ex-presidente Lula e o presidente da Câmara, Arthur Lira, e também o procurador-geral, Augusto Aras, e ministros do Supremo. Por que houve essa mudança de posicionamento público em relação à operação? Para responder essa pergunta, eu gostaria de dar uma sugestão de bibliografia. Leiam um livro do professor Rodrigo Chemim que compara a Lava Jato com a Operação Mãos Limpas ou "Morte a Vossa Excelência" [de Alexander Stille] e aí temos um recorte do que aconteceu na Itália.

É quase impossível para alguém que leu algumas dessas obras não fazer uma correlação com o Brasil. O fato é, e vejo com alguma naturalidade, os avanços da Operação Lava Jato no que podemos considerar o andar superior da sociedade iriam causar reações.

E causaram reações. Foram crescendo ao longo do tempo. Há uma guerra de narrativas que foram sendo construídas ao longo do tempo e foram entregues à sociedade nos anos recentes. E essa guerra de narrativas acabou tendo uma força muito grande.

E assim foi na Itália também. Em determinado momento, aquela adesão popular à Operação Mãos Limpas acabou ruindo. Mas ninguém é capaz de dizer que a Mãos Limpas foi um desastre, que seus juízes eram desonestos.

O que vimos lá foram mudanças de leis. A Itália mudou várias leis para beneficiar investigados, para dificultar o trabalho de magistrados. Acabou criando anistias. E hoje, em uma leitura bastante distante, o que nós vemos é que aqueles juízes que estavam julgando eram pessoas probas, que fizeram o bem. Tem muitas similitudes. A leitura diz mais sobre o Brasil do que qualquer coisa que eu possa falar.

O que o sr. diz é que há uma reação política de alguns atores que se sentiram atingidos pelas investigações e que tomaram atitudes para podá-la? Não diria reação política, mas reação em geral. Não vou me limitar quem é A ou B.

Aquelas pessoas que de algum modo se sentiram atingidas ou que correm o risco de serem atingidas acabam reagindo. Isso é natural. Estavam em suas zonas de conforto e as pessoas foram pelo menos ameaçadas. E elas procuraram trazer algum tipo de defesa para suas condutas.

O ex-presidente da Associação dos Juízes Federais Nino Toldo se disse frustrado com situações que levaram a Lava Jato a ser questionada, como a ida do ex-juiz Moro para o governo. O sr. também tem algum sentimento [a respeito] quando vê a Lava Jato sendo questionada por tantos órgãos? Com certeza você não leu o livro sobre as Mãos Limpas, né? Desculpa a brincadeira.

As pessoas para quem interessa esse discurso querem fazer uma leitura retrospectiva. Eles estão procurando em um fato posterior uma nulidade antecedente. Isso não existe. É uma leitura, a meu juízo, bastante equivocada. Já enfrentei essa matéria, já julguei.

É da essência do Judiciário respeitar quem pensa de modo diverso. Lá, quando se começa na carreira, já se aprende isso nos primeiros dias, que a decisão pode ser mudada por um desembargador.

Alguns fatos posteriores foram dados como se aquilo fosse objeto de uma elucubração, uma preparação, uma articulação. Desculpa, isso é uma visão de quem quer criar uma narrativa sobre algo que não existe.

Ao mesmo tempo foram esses os argumentos da decisão que considerou Moro parcial no caso do tríplex, de que ele acabou aderindo ao governo de um opositor político de Lula. Qual consequência o senhor antevê dessa decisão? Agora vamos ver os desdobramentos do que pode acontecer e quem tem que dizer sobre esses desdobramentos é o próprio Supremo. Me pareceu, e daquilo que eu consegui assistir, que os ministros deixaram bem claro que estavam tomando uma decisão pontual num caso bem específico. Se isso vai ser levado para outro processo ou não é quem decide é o próprio Supremo.

Como é que o senhor vê as mensagens da Operação Spoofing que foram vazadas e vêm sendo citadas por ministros do Supremo? Alguns veem a possibilidade de elas serem usadas como prova. O tribunal já julgou essa matéria também. Nós já dissemos que são provas ilícitas e para isso não se presta. Não consegui assistir à sessão inteira, mas o que ministros falaram foi que essa prova é ilegal, tanto que em longo voto, quase que alterando o que tinha dito semanas atrás, o ministro Gilmar Mendes foi muito enfático em dizer que não usava aquelas mensagens porque elas são ilícitas.

Embora não possam ser usadas judicialmente, essas mensagens abalaram a credibilidade da operação de modo muito enfático, principalmente gerando afirmações de conluio entre acusação e magistrado. Esse abalo pode ser revertido? Isso é um problema social, um problema político. Abalo na credibilidade de uma operação é como a sociedade enxerga isso, como as pessoas do mundo exterior veem a Operação Lava Jato e o grau de apoio que ela recebe ou não. Credibilidade é uma questão que muito mais afeta a percepção do outro do que a tua própria percepção sobre os fatos.

Mas o fato que eu vejo é que muitas mensagens são colocadas de modo absolutamente descontextualizado, de modo equivocado, tentando induzir em raciocínios mentais para as pessoas que leem as matérias, que trazem essas mensagens de um modo mundo direcionado, muito equivocado.

Anos atrás houve muitos questionamentos em relação ao TRF-4, especialmente da defesa de Lula, em relação à celeridade dos processos que tramitaram sobre ele. A defesa e ele até hoje insistem que isso era para tirá-lo do jogo político em 2018. Como o sr. se posiciona sobre isso? Não tem nenhuma preocupação política. Nunca houve no TRF-4, nos juízes criminais, nenhuma intenção para que pudesse prejudicar ou beneficiar quem quer que seja. Nunca olhamos para capa de processos, para nomes. Pode verificar que a conduta é mais ou menos homogênea em todos os processos.

Absolvemos diversos réus que foram condenados no primeiro grau, agravamos penas de outros e diminuímos penas... O tribunal agiu sempre com muita tranquilidade e serenidade, não houve essa decantada articulação política.

Não temos nenhum interesse político. Isso é um discurso que se procura criar, essa politização. Eu até vejo com naturalidade esse discurso quando vem da boca de quem vive a política, que tem o viés de olhar as coisas por essa ótica, achando que tudo é política. O nosso tratamento é técnico-jurídico, é assim que nós procedemos.

O tribunal é conhecido por sua produtividade, é célere como um todo, as turmas criminais são mais céleres ainda, porque estamos tratando do direito de ir e vir das pessoas, com réus presos.

Ninguém privilegiou processo A ou processo B. O que há, isso é fato, nesses processos da Operação Lava Jato nós vamos compreendendo e conhecendo durante muito tempo. No dia em que há uma operação no primeiro grau, seja prisão ou busca e apreensão, eu começo a receber exceção de suspeição, habeas corpus, exceção de incompetência, recursos contra apreensão de bem, pedido para liberação, embargos de terceiros. Eu começo a conhecer o processo.

Quando ele chega no tribunal, e não estou me relatando a um processo específico, chega com uma gama de informação e decisões praticamente já tomadas. Não há e nunca houve nenhuma preocupação política e isso pode ser verificado porque já julgamos políticos de vários partidos e nenhum deles foi beneficiado ou prejudicado por qualquer motivo.

Todos receberam o mesmo tratamento: republicano, digno, respeitoso, e o tribunal empregou os melhores dos seus esforços para julgar as condutas. Não estamos julgando o ser humano, nem as histórias das pessoas, mas as condutas e as provas nos processos.

A defesa do ex-presidente Lula afirmava que o sr. tinha amizade íntima com o ex-juiz Moro. Como o sr. viu isso e qual a sua relação com ele? Eu já tive que responder a uma exceção de suspeição [recurso sobre o tema]. Acho legítimo que a parte entre com todos os recursos, isso é muito natural e muito transparente. Sou amigo de longa data do juiz Sergio Moro, nos conhecemos na magistratura em primeiro grau de jurisdição.

Eu atuava numa vara e ele em outra vara, assim como sou amigo de dezenas, se não centenas de magistrados de primeiro grau, e isso não me torna impedido pra julgar nenhum processo de nenhum desses juízes. Ser amigo de um juiz não é a mesma coisa de ser amigo da parte. O juiz é o julgador do processo. E tenho amigos nos tribunais superiores e no TRF-4 e isso não me torna suspeito e nem os torna suspeitos de julgar nenhum processo.​

Raio-X

João Pedro Gebran Neto, 57
É o relator da Lava Jato no TRF-4 (Tribunal Regional Federal da 4ª Região) desde 2014, ano em que a operação foi deflagrada. Juiz federal no Paraná a partir de 1993, foi nomeado para a corte regional em 2013. Também é mestre em direito pela Universidade Federal do Paraná.

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