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Lei da ditadura usada contra Danilo Gentili, Felipe Neto e deputado é contestada e pode indicar abuso

Especialistas temem precedentes que afetem liberdade de expressão e veem falhas do Supremo Tribunal Federal

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São Paulo

O uso indiscriminado da Lei de Segurança Nacional em razão de declarações contra autoridades e instituições se tornou alvo de preocupação de especialistas, que apontam risco de abuso do Estado.

Apenas nas últimas semanas, a lei gestada durante a ditadura militar foi utilizada contra figuras públicas como o humorista Danilo Gentili, o youtuber Felipe Neto e o deputado bolsonarista Daniel Silveira (PSL-RJ). O governo Jair Bolsonaro e seus apoiadores também têm recorrido a ela contra seus detratores.

Nas redes sociais, apoiadores do presidente vêm tratando os casos como equivalentes. Apesar de ressaltarem as diferenças entre eles, especialistas ouvidos pela Folha apontam que é sinal de preocupação a invocação cada vez mais frequente à Lei de Segurança Nacional, inclusive pelo STF (Supremo Tribunal Federal).

Na semana passada, o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ) anunciou ter movido uma notícia-crime contra Felipe Neto, com base na LSN, por ter chamado o presidente da República de genocida em um tuíte. Nesta quinta (18), a investigação contra o youtuber foi suspensa por decisão liminar (provisória).

A juíza Gisele Guida de Faria entendeu que não era atribuição da Polícia Civil a investigação e apontou "flagrante ilegalidade" porque Carlos Bolsonaro "não integra o Ministério Público, não é militar responsável pela segurança interna nem é ministro da Justiça".

​Segundo os entrevistados, parte do problema estaria no fato de o próprio STF utilizar a Lei de Segurança Nacional em suas decisões como se tivesse havido uma análise quanto à sua compatibilidade com a Constituição de 1988 —algo que o Supremo ainda não fez, apesar de haver ações questionando a legislação.

Outro ponto considerado problemático é a argumentação pouco detalhada por parte do Supremo quando invoca a lei, dando margem para que precedentes sejam usados de maneira cada vez mais ampla, cerceando a liberdade de expressão e coibindo críticas a autoridades e ao governo.

Leonardo Penteado Rosa, professor de direito da Universidade Federal de Lavras, avalia também que a valorização da reputação do presidente e das demais autoridades públicas permite a criação de mecanismos jurídicos que passam a ser usados de forma abusiva.

“Em um regime democrático, a honra do presidente da República não é um valor relevante. Eu nunca vi um jurista dizer isso, eu nunca vi o STF dizer isso. Enquanto a gente não disser isso, a liberdade de expressão vai ser cerceada no Brasil”, disse ele. “Se o Supremo está sendo ameaçado de ser fechado, o problema não é a honra do ministro.”

Alexandre Wunderlich, professor de direito penal da PUC-RS e autor do livro “Crime Político, Segurança Nacional e Terrorismo”, considera que a Lei de Segurança Nacional vem sendo usada de forma imoderada e vê abuso em sua aplicação pelo Supremo, ao usar dispositivos da lei sem ter discutido se eles são ou não compatíveis com a Constituição.

Na visão da professora de direito penal da FGV Raquel Scalcon, a LSN não é compatível com a Constituição e seu uso deveria ser evitado. No entanto, ela pontua que, enquanto a lei estiver em vigor, não é possível dizer que qualquer uso da lei seja um abuso de poder.

“Considerando todas as críticas que ela sofre, considerando que tem mais de uma ADPF [questionamento sobre compatibilidade com a Constituição] que discute essa questão de ela ter validade ou não, acho que o Supremo deveria ter esse cuidado de buscar todos os argumentos antes de usar essa lei”, disse.

A última versão da Lei de Segurança Nacional foi editada em 1983, perto do fim do regime militar (1964-1985), sendo um desdobramento de legislações anteriores, mais duras, usadas contra opositores políticos. Versões anteriores chegaram a prever inclusive pena de morte.

O deputado Daniel Silveira (PSL-RJ) foi preso em fevereiro após determinação do ministro Alexandre de Moraes, que foi confirmada pelo plenário do STF.

As falas de Silveira, em um vídeo de quase 20 minutos, foram consideradas crimes contra a segurança nacional, por conferirem ataques ao Estado democrático de Direito, como a defesa do AI-5 editado pela ditadura militar. Além disso, Moraes argumentou que o deputado poderia ser preso em flagrante, pois o vídeo havia sido disponibilizado online.

A professora de direito Fabiana dos Santos Santiago, autora de um livro sobre o histórico da Lei de Segurança Nacional, da era Getúlio Vargas à gestão de Michel Temer, considera que, dada a inexistência de uma lei que defenda o Estado de Direito, é aceitável que o Supremo utilize a LSN em defesa das instituições democráticas e da separação dos Poderes. ​

Apesar disso, ela critica o uso, na decisão de Moraes, de artigos vagos da legislação, como o item que trata da incitação à subversão da ordem e o artigo que prevê reclusão de um a quatro anos a quem caluniar ou difamar os presidentes de qualquer um dos Três Poderes.

“Colocar a honra dos chefes dos Poderes da União no mesmo patamar da defesa do território, da integridade, da soberania do Estado também é um equívoco”, afirmou.

A prisão de Silveira gerou uma série de questionamentos na classe jurídica, principalmente em relação à argumentação para prisão em flagrante, e teve reverberação imediata na classe política, que tentou votar a toque de caixa a PEC da Imunidade Parlamentar.

No que parte dos entrevistados interpretou como uma resposta política, pouco tempo depois, a Câmara dos Deputados, por meio de sua Procuradoria, entrou com um pedido de prisão no STF contra o humorista Danilo Gentili.

O humorista tuitou, em 25 de fevereiro, que só acreditaria que o Brasil tem jeito “se a população entrasse agora na Câmara e socasse todo deputado que está nesse momento discutindo a PEC da imunidade parlamentar”.

A advogada criminalista Ana Carolina Moreira Santos não considera que as falas de Gentili tenham a mesma gravidade que as falas de Daniel Silveira.

Porém ela é crítica à argumentação dada por Moraes para decretar a prisão em flagrante. “A partir do momento que você abre esse precedente, está colocando em risco toda a sociedade, toda a cidadania.”

Em manifestação, a PGR afirmou que não seria necessária a prisão, dado que o próprio Gentili tinha apagado o tuíte e se retratado em seu perfil. Além disso, pontuou que só se deveria recorrer à prisão como último recurso.

Defendeu, no entanto, que o ato tinha conexão com o inquérito dos atos antidemocráticos e que Gentili deveria ser proibido de utilizar o Twitter e de se aproximar a menos de um quilômetro da Câmara dos Deputados.

Os artigos da Lei de Segurança Nacional apontados por Moraes na decisão que decretou a prisão em flagrante de Silveira foram praticamente os mesmos utilizados no pedido contra Gentili.

Em Uberlândia (MG), um homem foi preso em flagrante, também com base na LSN, depois de ter feito postagens sobre a visita de Jair Bolsonaro à cidade. Um dia antes da visita, João Reginaldo Silva Júnior escreveu em seu perfil no Twitter, com cerca de 150 seguidores: “Gente, Bolsonaro em Udia [Uberlândia] amanhã...Alguém fecha virar herói nacional?”.

Para Clarissa Tassinari, doutora em direito público e professora do curso de mestrado da Unisinos/RS, a discussão já não é somente quanto à aplicação da Lei de Segurança Nacional. “Mas, sim, da interpretação do que pode ser considerado ameaça, incitação à violência, fragilização da democracia na forma de promoção de um mal-estar institucional que abale a nação.”

De acordo com Francisco Brito Cruz, diretor do InternetLab, é preciso avaliar diferentes variáveis, como quem é a pessoa que emitiu determinada manifestação e em que contexto, não só o conteúdo do que foi dito. “É dessas diferenciações que vem a aplicação justa da lei”. Segundo ele, no entanto, tais diferenciações não estão sendo produzidas pela jurisprudência brasileira.

Para Tayara Lemos, professora de direito constitucional da Universidade Federal de Juiz de Fora (campus Governador Valadares), na análise do caso de Daniel Silveira, deve ser levado em conta que se tratava de um membro do Parlamento incitando a violência contra outro Poder.

No entanto, ela aponta que o uso desmedido da LSN sem a devida distinção entre os casos acaba banalizando o uso da lei, tendo impactos negativos na liberdade de expressão.

No caso do Danilo Gentili, por exemplo, outros instrumentos do direito poderiam ter sido mobilizados. ”Preocupa-me o que o efeito ‘decisão Daniel Silveira’ pode gerar."

A LEI DE SEGURANÇA NACIONAL

Entenda as origens, o seu uso atual e as propostas para modificá-la ou revogá-la

A LEI

Tendo sua última versão editada no estertores do regime militar (1964-1985), em 1983, é uma herança do período ditatorial, sendo um desdobramento de legislações anteriores, mais duras, usadas contra opositores políticos.

O QUE HÁ NELA

Com 35 artigos, estabelece, em suma, crimes contra a "a integridade territorial e a soberania nacional, o regime representativo e democrático, a federação e o Estado de Direito e a pessoa dos chefes dos Poderes da União".

Traz termos genéricos, como incitação à subversão da ordem política ou social" e artigos anacrônicos, como pena de até 4 anos de prisão para quem imputar fato ofensivo à reputação dos presidentes da República, do Supremo, da Câmara e do Senado.

EXEMPLOS DE APLICAÇÃO NOS DIAS DE HOJE

  • O procurador-geral da República, Augusto Aras, usou a lei para pedir ao STF a abertura de inquérito para apurar atos antidemocráticos promovidos por bolsonaristas, com o apoio do presidente da República

  • O Ministério da Defesa usou a lei em representação contra o ministro do STF Gilmar Mendes, que havia declarado que o Exército estava "se associando a um genocídio" na gestão da pandemia

  • O ministro da Justiça, André Mendonça, usou a lei para embasar pedidos de investigação contra jornalistas, entre eles, o colunista da Folha Hélio Schwartsman, pelo texto "Por que torço para que Bolsonaro morra", publicado após o presidente anunciar que havia contraído a Covid-19

  • O ministro Alexandre de Moraes (STF) usou a lei para embasar a prisão do bolsonarista Daniel Silveira (PSL-RJ).

​PROPOSTAS DE MUDANÇA OU REVOGAÇÃO

Há em tramitação na Câmara 37 projetos de lei que alteram ou revogam a lei, entre elas a de substituição por uma Lei de defesa do Estado democrático de Direito em que seria punido, entre outras ações, a apologia de fato criminoso ou de autor de crime perpetrado pelo regime militar (1964-1985)

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