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Liberdade de expressão não autoriza discurso de ódio, diz professora especialista em Lei de Segurança Nacional

Para Fabiana Santos Santiago, norma deve ser removida ou revogada, mas é preciso proteger Estado democrático de Direito

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Brasília

Autora de um livro sobre o histórico da Lei de Segurança Nacional, da era Getúlio Vargas à gestão de Michel Temer, a professora de direito Fabiana Figueiredo Felício dos Santos Santiago, 36, afirma que a norma é um dos exemplos da transição deficitária da ditadura para a democracia no Brasil, sendo necessária sua revisão ou revogação.

Apesar disso, ela diz que a lei —editada em 1983, nos estertores da ditadura militar— não é de todo ruim e deve, qualquer que seja seu destino, preservar mecanismos de defesa das instituições e do Estado democrático de Direito.

Em sua visão, é acertado o uso da norma pelo ministro Alexandre de Moraes, do STF (Supremo Tribunal Federal), contra grupos que buscam solapar as instituições e a democracia.

O mesmo não ocorre, ressalta, no uso feito pelo governo de Jair Bolsonaro contra chargistas e jornalistas —um deles o colunista da Folha Hélio Schwartsman, pelo texto "Por que torço para que Bolsonaro morra", publicado após o presidente anunciar que havia contraído a Covid-19.

"Uma coisa é liberdade de expressão, outra, o discurso de ódio. A liberdade de expressão não pode autorizar um discurso de ódio."

Mulher de braços cruzados sorri para foto, com uma estante ao fundo repleta de livros
Fabiana Santos Santiago, professora de direito e autora do livro "Lei de Segurança Nacional: de Vargas a Temer, uma Necessária Releitura" (editora Lumen Juris, 2019) - Raul Spinassé/Folhapress

Por que, quase 40 anos depois, a Lei de Segurança Nacional ainda não foi reformada ou revogada? Porque por muito tempo ela ficou esquecida, no ostracismo. Quando eu estava estudando para minha dissertação de mestrado, por exemplo, eu procurei um membro do Ministério Público e ele falou: "Não faço a menor ideia de que lei seja essa".

A gente tem leis de segurança nacional desde o governo Vargas [que assumiu o poder em 1930]. E sempre com esse viés de criminalizar e impedir movimentos sociais. Ela sofre um recrudescimento muito grande na época da Junta Militar [que assumiu o governo em agosto de 1969 após o afastamento, por doença, do general Costa e Silva]. O pior cenário é a versão de setembro de 1969, que dispunha, inclusive, da possibilidade de pena de morte.

A gente chega a ter condenação por pena de morte. Hoje, ele [o condenado] é até um juiz [aposentado] na Bahia. Ele conseguiu mudar para prisão perpétua e, depois, conseguiu reverter a pena. Hoje ele é um anistiado político [ela se refere ao caso de Theodomiro Romeiro dos Santos, ex-militante do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário, primeiro civil condenado à morte no Brasil republicano, em 1971, pelo assassinato de um militar no momento de sua detenção].

A lei foi sofrendo críticas da comunidade jurídica e ela vai sendo atenuada, até chegar aos moldes atuais. Só que ela passou muito tempo no ostracismo.

E o que levou a lei a voltar aos holofotes? Depois do episódio do uso no governo Fernando Henrique Cardoso da lei contra integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, ela volta efetivamente à mídia em 2013, com os protestos de rua de junho.

Na época, teve uma viatura da Polícia Civil que foi destruída, eles indiciaram um casal pela Lei de Segurança Nacional [artigo 15: Praticar sabotagem contra instalações militares, meios de comunicações, meios e vias de transporte]. Chamou muita atenção essa ressurreição dela. O juiz não aceitou o indiciamento pela lei, considerando não ter havido o dolo específico.

Ela volta com força de novo quando o então candidato Jair Bolsonaro é esfaqueado em Juiz de Fora [em 2018]. Eles voltam a falar na Lei de Segurança Nacional, de que haveria ali, na verdade, uma tentativa de impedir o jogo democrático. Esse processo também não vai para a frente com base na lei. É importante dizer isso: o Judiciário já tem demonstrado que a lei é muito específica em relação ao Estado democrático de Direito, não é qualquer conduta que dá para ser enquadrada.

Hoje a lei tem tido um uso crescente, em especial pelo governo Bolsonaro [em 2020 foram 51 inquéritos abertos pela PF com base nela], mas ela também embasou a decisão do ministro Alexandre de Moraes, do STF, que mandou prender o deputado bolsonarista Daniel Silveira (PSL-RJ). Seu livro vai até o governo Temer. Como avalia o uso sob Bolsonaro? Os projetos de lei [na Câmara] demonstram a necessidade de reforma parcial da lei. A maioria é no sentido de revogar a lei, mas criando meios de salvaguardar o Estado democrático de Direito. A lei não é de todo ruim, porque realmente você tem que ter uma proteção ao Estado democrático de Direito e às instituições democráticas do Estado brasileiro.

Quando o ministro da Justiça solicita a utilização da lei, ele se aproveita muito dos tipos penais abertos, o da subversão da ordem, de criticar o presidente, que são tipos penais que não deveriam estar mais ali. Subverter a ordem... Qualquer coisa pode subverter a ordem, é muito amplo.

Mas quando o ministro Alexandre de Moraes a utiliza para defesa das instituições democráticas, ele usa alguns daqueles artigos que merecem ser mantidos, ou ser alocados em uma outra lei ou no Código Penal. Ele teria meios de usar outras leis, mas a Lei de Segurança Nacional não é de todo ruim.

Em sua visão, há pontos da lei em consonância com o Estado democrático de Direito, então? Exatamente. A gente precisa ter mecanismos para defender as instituições democráticas. Quando um deputado federal faz aquele discurso que ele fez, contra o STF, é muito sério. Ele é um representante do Congresso Nacional. Ali foi preciso rigor. Só que, quando você utiliza essa mesma lei para afastar opositor político, isso está completamente em dissonância com o Estado democrático de Direito. Você está restaurando uma doutrina de outrora, da época da ditadura.

E não é só a Lei de Segurança Nacional. Em 2016 a gente teve a Lei Antiterrorismo e ela seria publicada com um artigo criminalizando movimentos sociais. Na época houve uma movimentação muito grande e a presidente Dilma Rousseff acabou vetando aquele artigo, mas ele está hoje novamente em pauta para retornar.

Tem um movimento muito grande na bancada da bala, de uma direita mais radical, de criminalizar movimentos sociais, manifestações populares. Não é só a Lei de Segurança Nacional que precisa de atenção especial.

Como você encara o discurso de grupos bolsonaristas, vários deles apologistas da ditadura, de que a liberdade de expressão só vale do lado de lá, que não é levada em conta em relação a eles? Ele é completamente falho. Tem uma diferença muito séria que a gente está deixando de levar em consideração. Uma coisa é liberdade de expressão, outra, o discurso de ódio. A liberdade de expressão não pode autorizar um discurso de ódio. Tem que ter limites ao discurso de ódio.

A liberdade de expressão não é absoluta, nenhum direito é absoluto, nem mesmo o direito à vida. Em caso de guerra declarada, pode ter pena de morte. Tanto se for usada pela esquerda ou pela direita, tem que ter limite.

Por que a permanência da lei, como está, é incompatível com o ambiente democrático? Na ditadura a gente teve uma questão da figura do inimigo interno. A doutrina de segurança nacional, que foi instaurada com inspiração norte-americana e francesa, com a criação da Escola Superior de Guerra no Brasil, na época do Golbery [o general Golbery do Couto e Silva, fundador do SNI e chefe do Gabinete Civil da Presidência de 1974 a 1981], criava uma atmosfera de ameaça constante. E era uma ameaça interna, de um levante comunista, não externa.

Aí você mantêm um estado de alerta total, e tenho até um trecho da minha dissertação que fala que se alguma coisa contraria a Constituição você muda a Constituição, simples assim. Citação ao padre Joseph Comblin [sarcedote belga, expulso do Brasil pela ditadura e autor de um dos livros de referência sobre a doutrina de segurança nacional]. E quem era esse inimigo, essa ameaça interna? Qualquer pessoa que não seguisse a cartilha.

E isso é tão sério, que a gente tem um decreto na década de 1960, na época do recrudescimento, que altera as estruturas das polícias, que coloca o policial com o treinamento de Forças Armadas, o tempo inteiro alerta, por estar em uma guerra permanente. Isso coloca o cidadão como inimigo do Estado. Quando se coloca o bem do Estado acima do bem do cidadão, você vai na contramão da Constituição, do direito internacional dos direitos humanos, você não promove uma justiça de transição.

O que é a justiça de transição e como ela se deu no caso brasileiro? A justiça de transição é quando o país passa por um momento de exceção e supera aquele momento. Ela tem como eixos a memória, a reparação e as reformas institucionais. Primeiro, tem que saber o que aconteceu. Se você não trabalha esse passado, se você deixa ele debaixo do tapete, a chance de ele acontecer novamente é muito grande. E no Brasil a gente não teve isso.

Teve a Comissão da Verdade [colegiado criado pelo governo federal para investigar crimes cometidos por agentes do Estado de 1946 a 1988 e que apresentou seu relatório final em 2014], mas muita coisa não pode ser aberta, e não teve reparação penal, principalmente. Teve reparação civil, reparação simbólica, alteração de nome de rua, de viaduto.

Suponhamos que fosse uma corrida de 100 metros. A gente correu 50 e está regredindo pro início. A Comissão de Anistia era do Ministério da Justiça e foi para o Ministério da Mulher, da Família e Direitos Humanos, da Damares Alves, e está perdendo força. Várias anistias estão sendo anuladas. E muita coisa não foi aberta na Comissão da Verdade. Sobre os camponeses e os índios, não há notícia no relatório da comissão.

Temos países como a Argentina que tem um memorial com todos os perseguidos, ela fez a persecução penal, prendeu os acusados, eles preservaram a memória, promoveram alterações institucionais, tem diversas legislações avançadas e democráticas. O Chile, a África do Sul, no pós-apartheid. Eles realmente tiveram uma justiça de transição. Completamente diferente do Brasil.

Quais reformas institucionais foram feitas? Muito poucas. A Lei de Imprensa foi considerada revogada, o Estatuto do Estrangeiro foi revogado e substituído pela Lei de Imigração, mas a gente ainda tem um entulho autoritário, a gente tem a Lei de Segurança Nacional, a Lei da Anistia [que concedeu perdão a todos que cometeram crimes políticos de 1961 a 1979].

As polícias não voltaram ao que eram antes. Não que a polícia não tenha que usar arma, estou falando do treinamento do Exército para a polícia, o treinamento de inimigo, de ameaça. E a polícia, na verdade, tem que estar alerta e a postos para ameaças, mas ela tem que ser uma parceira do cidadão também, e não gerar medo. E o Estado policial que até hoje se mantém, ele precisa ser reformado.

A sra. acredita que haverá clima no Congresso e no governo Bolsoanro para mudar ou revogar a lei? Eu não tenho muita esperança, infelizmente. Como as coisas estão indo, com esses decretos de armas, acho que essa noção de nós contra eles está cada vez mais forte. A democracia pressupõe dissenso, discussão, diálogo. Quando você estabelece uma regra de nós e eles, você inviabiliza qualquer tipo de diálogo.

Qual deveria ser a conduta do Congresso ao discutir a revisão da lei? Eu aconselharia que entendessem de onde vem essa Lei de Segurança Nacional, que não é mimimi, que é um símbolo de uma doutrina de um Estado de exceção. Ela pode ter sofrido um abrandamento, mas ainda é uma Lei de Segurança Nacional, trabalha com a figura da ameaça. E que revissem no sentido de revogar e criar uma lei de proteção ao Estado democrático de Direito.

Raio-X

Fabiana Figueiredo Felício dos Santos Santiago, 36
Autora do livro "Lei de Segurança Nacional: de Vargas a Temer, uma Necessária Releitura" (ed. Lumen Juris, 2019), é mestre em direito público pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e professora de direito no Centro Universitário Estácio e nas Faculdades Integradas UPIS, em Brasília


A LEI DE SEGURANÇA NACIONAL

Entenda as origens, o seu uso atual e as propostas para modificá-la ou revogá-la

A LEI
Tendo sua última versão editada no estertores do regime militar (1964-1985), em 1983, é uma herança do período ditatorial, sendo um desdobramento de legislações anteriores, mais duras, usadas contra opositores políticos.

O QUE HÁ NELA
Com 35 artigos, estabelece, em suma, crimes contra a "a integridade territorial e a soberania nacional, o regime representativo e democrático, a federação e o Estado de Direito e a pessoa dos chefes dos Poderes da União".

Traz termos genéricos, como incitação à subversão da ordem política ou social" e artigos anacrônicos, como pena de até 4 anos de prisão para quem imputar fato ofensivo à reputação dos presidentes da República, do Supremo, da Câmara e do Senado.

EXEMPLOS DE APLICAÇÃO NOS DIAS DE HOJE

  • O procurador-geral da República, Augusto Aras, usou a lei para pedir ao STF a abertura de inquérito para apurar atos antidemocráticos promovidos por bolsonaristas, com o apoio do presidente da República
  • O Ministério da Defesa usou a lei em representação contra o ministro do STF Gilmar Mendes, que havia declarado que o Exército estava "se associando a um genocídio" na gestão da pandemia
  • O ministro da Justiça, André Mendonça, usou a lei para embasar pedidos de investigação contra jornalistas, entre eles, o colunista da Folha Hélio Schwartsman, pelo texto "Por que torço para que Bolsonaro morra", publicado após o presidente anunciar que havia contraído a Covid-19
  • O ministro Alexandre de Moraes (STF) usou a lei para embasar a prisão do bolsonarista Daniel Silveira (PSL-RJ).

​PROPOSTAS DE MUDANÇA OU REVOGAÇÃO
Há em tramitação na Câmara 37 projetos de lei que alteram ou revogam a lei, entre elas a de substituição por uma Lei de defesa do Estado democrático de Direito em que seria punido, entre outras ações, a apologia de fato criminoso ou de autor de crime perpetrado pelo regime militar (1964-1985)

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