Da cloroquina à vacina, confrontos de Bolsonaro na pandemia devem ser alvo de CPI da Covid no Senado

Comissão pode embasar eventual responsabilização de membros do governo e do próprio presidente

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São Paulo

Desde o início da pandemia da Covid-19, há mais de um ano, o presidente Jair Bolsonaro tem confrontado, com ações e discursos, as medidas de proteção e de combate ao alastramento do vírus.

A CPI da Covid no Senado, prevista para ser instalada nesta terça-feira (27), deverá apurar elementos que podem não só auxiliar na compreensão de como foi guiada a política de saúde no plano federal como embasar eventual responsabilização de membros do governo e do próprio presidente.

Entenda alguns dos temas e episódios que envolveram ações diretas de Bolsonaro e que devem ser alvo da comissão parlamentar de inquérito.

Bolsonaro segura caixa no alto da cabeça com braços esticados, ao fundo, atrás de grade de proteção, população acompanha a cena
Jair Bolsonaro mostra caixa de cloroquina a apoiadores, em frente ao Palácio da Alvorada, em 19 de julho de 2020 - Reprodução Facebook /Jair Bolsonaro

De que modo Bolsonaro atuou durante a pandemia e como a CPI pode ser importante para entender as ações e omissões do governo? Consideradas pela medicina como medidas fundamentais na contenção do coronavírus, tanto as políticas de isolamento e distanciamento social quanto de uso de máscaras tiveram na figura do presidente da República um de seus principais antagonistas.

Além de atuar contra a compra de vacinas e de espalhar desinformação sobre os imunizantes, Bolsonaro ainda incentivou o uso de remédios sem eficácia comprovada contra a doença e mobilizou diferentes órgãos do governo para a produção de um deles, a cloroquina.

A advogada e conselheira federal da OAB Daniela Teixeira destaca que a CPI não vai investigar pessoas em específico e por isso também a importância de ela ter um escopo delimitado ao ser requisitada.

“A CPI não é para investigar uma pessoa, é para investigar um fato. O apagão aéreo, a Petrobras, os Correios e agora, no caso, o caos na pandemia, mas não é para investigar o presidente, o ministro, é para investigar o que aconteceu no Brasil.”

Nesse sentido, ela ressalta que a CPI vai, a partir de falhas operacionais do governo, investigar as responsabilidades das autoridades envolvidas.

A CPI não é um órgão julgador, mas apenas de investigação e que produz um relatório final com suas conclusões.

Em relação ao presidente da República, ela pode concluir tanto que ele cometeu crime de responsabilidade como crimes comuns ou ainda que não tenha cometido nenhuma irregularidade.

Como explica a professora de direito penal da FGV SP Raquel Scalcon, apesar do nome, os crimes de responsabilidade não são propriamente um crime, mas um ilícito administrativo.

De acordo com ela, a responsabilidade penal é mais exigente, sendo preciso indicar condutas concretas, motivações claras e provas suficientes para cogitar a consumação de algum crime.

Já o crime de responsabilidade possui tipos mais abertos e, diferentemente dos crimes comuns, tem componentes nitidamente políticos.

Bolsonaro poderia ser responsabilizado por sua atuação durante a pandemia? Além dos pedidos de impeachment apresentados à Câmara dos Deputados (que já passam dos cem), diferentes representações indicando cometimento de crime comum pelo presidente também foram apresentadas à PGR (Procuradoria-Geral da República).

Para Gabriela Zancaner Bandeira de Mello, professora de direito constitucional da PUC, com sua conduta no combate à pandemia, Bolsonaro agiu contra a saúde pública, que é um dos possíveis crimes de responsabilidade.

“Se a CPI conseguir demonstrar que o presidente agiu no sentido de promover uma medicação que não é eficaz, que atrasou na compra de vacinação, se recusou a comprar vacina, promoveu diversas aglomerações, eu acho bem possível que haja aí uma base bem forte para um processo de impeachment contra o presidente da República.”

Já entre as representações por crime comum na PGR está o pedido da OAB Nacional, que foi resultado dos trabalhos de uma comissão especial criada pela entidade e que é composta, entre outros, pelo ex-ministro do STF Carlos Ayres Britto e pelo ex-ministro da Justiça do governo FHC Miguel Reale Jr.

De acordo com o advogado criminalista e conselheiro federal da OAB Juliano Breda, “não houve apenas crime de responsabilidade ou quebra de decoro, houve, sim, práticas e ações que caracterizam crimes comuns que merecem a investigação da PGR”.

Na última semana, a OAB protocolou um aditamento à representação em que sustenta que seria de fundamental importância considerar as numerosas mortes e lesões corporais graves decorrentes das infrações do presidente.

A conclusão da comissão da OAB foi de que, entre outros crimes, o presidente teria violado intencionalmente medidas sanitárias de natureza preventiva, crime previsto no artigo 268 do Código Penal, e que causou por negligência centenas de milhares de mortes e lesões corporais de natureza grave, artigo 285 do Código Penal.

Segundo Breda, também medidas como vetos a legislação sobre uso de máscara ou decretos alterando atividades essenciais por parte do presidente podem ser enquadrados juridicamente.

"Temos convicção disso, na medida em que tais ações contrariam frontalmente as recomendações médicas e científicas e a própria legislação federal aprovada sobre medidas necessárias ao enfrentamento da pandemia."

No caso de a conclusão da CPI ser de que o presidente da República possa ter cometido crimes comuns, o relatório é enviado para a PGR, que pode instaurar um inquérito para investigar o que ainda julgar necessário ou oferecer uma denúncia ao STF (Supremo Tribunal Federal), se entender que há elementos suficientes.

A denúncia somente pode ser feita pelo procurador-geral da República, cargo ocupado por Augusto Aras, cujo mandato vai até setembro e que pode ser reconduzido por Bolsonaro por mais dois anos. Para que o presidente seja julgado pelo Supremo, porém, é preciso ainda o aval de 342 deputados federais.

Já no caso de o relatório apontar, por exemplo, que o presidente cometeu crimes de responsabilidade, cabe ao presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), avaliar se pauta ou não a votação de abertura de um processo de impeachment.

Em casos de ações e omissões de ministros de seu governo que sejam consideradas criminosas, Bolsonaro também seria responsabilizado? Desde o início da pandemia, o Ministério da Saúde, responsável por coordenar o combate à Covid-19, teve quatro diferentes ministros.

O mais longevo deles, que assumiu o posto em maio de 2020, como interino, foi o general Eduardo Pazuello e que só deixou o cargo após as repercussões da grave crise da falta de oxigênio em Manaus. Por causa do episódio, o ex-ministro é alvo de inquérito.

Sem experiência na área da saúde, Pazuello chegou a dizer, depois de quase cinco meses no cargo, que não sabia o que era o SUS (Sistema Único de Saúde) até aquele momento da vida.

A saída dos ministros Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich foi motivada por divergências com o presidente.

Na representação por crime comum, a OAB defende que o presidente pode ser responsabilizado por eventuais condutas criminosas de suas pastas.

“Ministérios integram a cúpula administrativa do governo federal. São diretamente subordinados ao presidente da República, auxiliando no exercício do Poder Executivo, e executam a política traçada pelo chefe do executivo. Desse modo, é inquestionável que a gestão ministerial criminosa da saúde deve ser imputada ao presidente, dado que é ele quem estabelece a política a ser seguida pela pasta.”

Já a professora Raquel Scalcon faz algumas ressalvas quanto a tal possibilidade. De acordo com ela, uma responsabilização do presidente por atos de seus ministros dependeria, no mínimo, de dois requisitos.

Em primeiro lugar, um dos ministros teria de ter cometido algum crime; em segundo lugar ou o presidente precisaria ter determinado e orientado o ministro para tal ação, ou então, estando ciente e informado da conduta criminosa do ministro, não ter tomado nenhuma atitude para evitar tal conduta ou determinado que o ministro parasse de cometer o referido crime.

“Implicar criminalmente o presidente Bolsonaro por ações e, mais ainda, por omissões de seus ministros demandaria uma construção juridicamente sofisticada e difícil, porque essa responsabilidade penal por atos de terceiros é, em si, uma exceção no direito penal.”

A CPI EM CINCO PONTOS

  • Foi criada após determinação do Supremo ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG)

  • Investiga ações e omissões de Bolsonaro na pandemia e repasses federais a estados e municípios

  • Tem prazo inicial (prorrogável) de 90 dias para realizar procedimentos de investigação

  • Relatório final será encaminhado ao Ministério Público para eventuais criminalizações

  • É formada por 11 integrantes, com minoria de senadores governistas

Para Samuel Vida, advogado e professor de direito constitucional da UFBA (Universidade Federal da Bahia), tanto o episódio do recuo na compra de vacinas quanto do protocolo da cloroquina devem ser esmiuçados na CPI, pois possibilitam rastrear uma definição política por parte do presidente em relação à política de saúde seguida pelos órgãos a ele subordinados.

“Acho que esses dois episódios, diferent emente da mera manifestação de opinião, que já é por si só grave, mostram decisões políticas, que podem ser perfeitamente investigadas como parte da política do Executivo no que tange o enfrentamento da Covid; e os impactos disso podem ser eventualmente mensurados.”

Nelson Teich pediu demissão com menos de um mês no cargo, em 15 de maio de 2020, em meio a divergências sobre a cloroquina.

Em 20 de maio, sob Pazuello, o Ministério da Saúde alterou o protocolo referente ao medicamento, ampliando a orientação de uso da cloroquina também para pacientes com sintomas leves do novo coronavírus.

Um dia antes de Teich pedir demissão, o presidente afirmou em live semanal: "Eu acho que amanhã [15] Teich dará uma resposta para a gente. Acho que vai ser pela mudança do protocolo. Para poder usar [a cloroquina] no início do tratamento".

Semanas antes, Teich havia dito que a recomendação dependia de estudo científico sólido, enquanto o presidente fazia declarações nítidas de que defendia a mudança.

À época, estudos internacionais publicados em revistas científicas de prestígio já identificavam que o medicamento não mostrava redução de internações e mortes e apontavam riscos cardíacos.

Outro episódio em que a influência de Bolsonaro foi pública e notória envolveu a vacinação.

Um dia depois de Pazuello anunciar acordo com o estado de São Paulo para a compra de 46 milhões de doses da Coronavac, Bolsonaro desautorizou o ministro e escreveu: "Não será comprada", ao responder ao comentário de um internauta.

A situação levou o ministério a recuar, em parte, no anúncio do dia anterior. "Não houve qualquer compromisso com o governo do estado de São Paulo ou seu governador, no sentido de aquisição de vacinas contra Covid-19".

Em ofício do dia 19 de outubro, no entanto, Pazuello manifestava a intenção da pasta que comanda em adquirir 46 milhões de doses da CoronaVac ao preço de U$10,30 (cerca de R$57) a dose.

Na mesma semana, em transmissão junto com Bolsonaro, Pazuello disse: "Senhores, é simples assim. Um manda e o outro obedece, mas a gente tem um carinho".

Como Bolsonaro atuou contra as medidas de prevenção ao coronavírus? Já no começo da pandemia, Bolsonaro criticava medidas de isolamento e defendia o "isolamento vertical", que consistiria em isolar apenas as pessoas de grupos de risco como idosos e portadores de doenças como hipertensão e diabetes. Além disso, desde então, promovia aglomerações em passeios e saídas nos finais de semana.

Após a decisão do STF de que estados e municípios têm autonomia para determinar o isolamento social, o presidente fez afirmações incorretas como se a decisão o eximisse de tomar medidas para combater o avanço da doença.

As falas críticas às políticas de isolamento continuaram e, em meados de março de 2021, em um momento em que o Brasil registrava 2.659 e somava quase 288 mil mortes, o presidente anunciou que tinha ingressado com uma ação no STF contra governadores pedindo a suspensão de decretos adotados pelo Distrito Federal, Bahia e Rio Grande do Sul.

Na peça, o presidente também defendeu que o Supremo reconheça que, mesmo em casos de necessidade sanitária comprovada, o fechamento de serviços não essenciais não pode ser determinado por decreto, necessitando para tanto de lei específica.

Em mais de uma oportunidade, Bolsonaro atualizou decretos que listavam atividades essenciais, acrescentando atividades religiosas e casas lotéricas e depois, academias, salões de beleza e barbearias.

Em julho de 2020, o presidente fez diversos vetos no projeto de lei sobre uso de máscaras durante a pandemia aprovado pelo Congresso no início de junho. Entre eles, dispositivos que tornavam obrigatório o uso da peça em igrejas, comércios e escolas. A medida acabou derrubada pelo Legislativo.

Veja abaixo ações de Bolsonaro confrontando combate à pandemia:

PREVENÇÃO

Isolamento vertical e aglomerações

Defensor do chamado "isolamento vertical", que consistiria em isolar apenas as pessoas de grupos de risco, Bolsonaro já promovia diversas aglomerações desde o início da pandemia. Poucos dias antes de ser demitido em 16 de abril, o então ministro Mandetta disse, em entrevista, que o brasileiro não sabia se escutava o ministro da Saúde ou o presidente.

Atividades essenciais

No dia 26 de março, Bolsonaro atualizou decreto que listava atividades essenciais, acrescentando atividades religiosas e casas lotéricas. Um dia depois da atualização, a Justiça Federal suspendeu a validade do decreto. Em maio de 2020, Bolsonaro incluiu academias, salões de beleza e barbearias na lista de serviços essenciais.

Uso de máscaras

Em julho de 2020, o presidente fez diversos vetos no projeto de lei sobre uso de máscaras durante a pandemia aprovado pelo Congresso no início de junho. Entre eles, dispositivos que tornavam obrigatório o uso da peça em igrejas, comércios e escolas. A medida acabou derrubada pelo Legislativo.

Pressão contra medidas de isolamento e governadores

No final de abril de 2020, o STF decidiu por unanimidade que estados e municípios têm autonomia para determinar o isolamento social em meio à pandemia do coronavírus. Após a decisão, o presidente fez afirmações incorretas como se a decisão o eximisse de tomar medidas para combater o avanço da doença.

Em um gesto de pressão, no início de maio de 2020, Bolsonaro levou de surpresa um grupo de empresários ao STF para relatar ao então presidente da corte, ministro Dias Toffoli, os impactos do isolamento social na iniciativa privada. No mesmo dia, o Brasil registrava 610 óbitos por coronavírus e tinham morrido 9.146 pessoas no país pela doença.

As críticas às políticas de isolamento continuaram ao longo de toda a pandemia e, em meados de março de 2021, em um momento em que o Brasil registrava 2.659 e somava quase 288 mil mortes, o presidente anunciou que tinha ingressado com uma ação no STF contra governadores pedindo a suspensão de decretos de governadores.

CLOROQUINA

Orientação para casos leves

A divergência sobre o protocolo do ministério da Saúde do uso da cloroquina no combate ao coronavírus teria sido o motivo principal da queda de Nelson Teich, que pediu demissão com menos de um mês no cargo, em 15 de maio de 2020.

Dias depois de sua saída, o Ministério da Saúde divulgou o documento, ampliando a orientação de uso da cloroquina também para pacientes com sintomas leves da doença.

Em uma teleconferência com grandes empresários em 14 de maio de 2020, Bolsonaro disse "pode e vai mudar" sobre o protocolo que avalizava o uso do medicamento apenas para casos críticos e graves. À época, estudos internacionais publicados em revistas científicas de prestígio já identificavam que o medicamento não mostrava redução de internações e mortes e apontavam riscos cardíacos.

Produção e distribuição

Reportagem da Folha de fevereiro de 2021 mostrou que o governo de Jair Bolsonaro mobilizou pelo menos cinco ministérios, uma estatal, dois conselhos da área econômica, Exército e Aeronáutica para distribuir cloroquina.

No TCU, uma auditoria apontou ilegalidade em uso de dinheiro do SUS para custear a distribuição do medicamento. A Procuradoria da República no DF abriu um processo, na esfera cível, para investigar improbidade.

Reportagem da Folha de abril de 2021, mostrou que o Exército viabilizou recursos públicos para a ampliação da produção de cloroquina dois dias depois de o presidente Jair Bolsonaro determinar ao então ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, o aumento da fabricação da droga.

VACINAÇÃO

'Virar um jacaré' e vacina da Pfizer

Reportagem da Folha, de março de 2021, mostrou que o governo brasileiro rejeitou no ano passado proposta da farmacêutica Pfizer que previa 70 milhões de doses de vacinas até dezembro deste ano. Do total, 3 milhões estavam previstos até fevereiro.

Em discurso, na Bahia, em dezembro de 2020, o presidente disse que a Pfizer não se responsabilizava por efeitos colaterais e afirmou: “Se tomar e virar um jacaré é problema seu”.

‘Não será cobaia’ e Coronavac

Um dia depois de Eduardo Pazuello anunciar acordo com o estado de São Paulo para a compra de 46 milhões de doses da Coronavac, Bolsonaro desautorizou o ministro, que teve que recuar.

Em resposta a um internauta, Bolsonaro escreveu: “Não será comprada”. Em transmissão junto com Bolsonaro, um dia depois do recuo, Pazuello disse: "Senhores, é simples assim. Um manda e o outro obedece, mas a gente tem um carinho".

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