Bolsonaro já defendeu tortura para quem pediu para se calar em CPI, como Pazuello fez agora

Presidente sugeriu pau de arara para forçar depoente a 'abrir a boca' em comissão que atingia o governo FHC

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São Paulo

O presidente Jair Bolsonaro (sem partido), que hoje vê aliados irem ao STF (Supremo Tribunal Federal) para ficarem em silêncio na CPI da Covid, já defendeu tortura para um depoente que invocou o direito em uma comissão parlamentar de inquérito negativa para Fernando Henrique Cardoso (PSDB).

"Dá porrada no Chico Lopes. Eu até sou favorável que a CPI, no caso do Chico Lopes, tivesse pau de arara lá. Ele merecia isso: pau de arara. Funciona! Eu sou favorável à tortura, tu sabe disso. E o povo é favorável a isso também", disse Bolsonaro em uma entrevista em 1999.

Na participação no programa "Câmera Aberta", da Band, ele também falou que governos não deveriam temer CPIs que expusessem "a verdade".

Ex-presidente do Banco Central, Lopes se recusou naquele ano a depor na CPI dos Bancos na condição de testemunha. Aconselhado por advogados, ele pediu que fosse ouvido como acusado, um salvo-conduto para ficar em silêncio ou dar respostas que não o incriminassem, direito previsto na Constituição.

Indiciado pela Polícia Federal, o economista se negou a assinar o termo de compromisso como testemunha da CPI, que o obrigava a falar somente a verdade. Após um intenso embate com parlamentares, Lopes saiu do Senado preso por desacato e desobediência.

O STF acabou concedendo a ele a liberdade e a prerrogativa de ser tratado como testemunha e, com isso, evitar produzir prova contra si mesmo, em uma decisão que se tornaria paradigmática para casos semelhantes.

Na entrevista ao programa Câmera Aberta, da Band, Bolsonaro disparou ofensas ao ex-presidente do BC para o qual sugeriu o pau de arara —técnica de tortura na qual a pessoa fica suspensa em um travessão, com braços e pés amarrados, enquanto sofre golpes e choques elétricos, por exemplo.

Segundo o então deputado federal, Lopes, que presidiu o BC por menos de um mês, entre janeiro e fevereiro de 1999, deveria ser forçado a "abrir a boca".

"Como é que pode um ex-presidente de Banco Central falar que tem o direito de ficar calado? É um imoral, um sem-vergonha. Ele tinha que ir lá e contar a verdade. Por que o medo da verdade?", disse.

"É um ladrão. Eu não posso falar outra coisa. Quer me processar, processe. Ainda bem que eu tenho imunidade [parlamentar], tá Ok?", completou. A entrevista ao apresentador Jair Marchesini foi ao ar em maio de 1999, cerca de um mês depois da prisão do economista.

Bolsonaro disse ainda que a decisão de Lopes foi orientada pelo então ministro da Casa Civil, Clóvis Carvalho. "Porque, se ele [Lopes] abre a boca, cai o governo." A Folha noticiou na época que o Planalto ajudou a articular a estratégia que levou ao adiamento da oitiva.

Em sequência de críticas a FHC, o então parlamentar acusou o tucano de estar "tentando abafar" a CPI e falou que o governo dele era "mais do que podre" e o "mais corrupto da história do Brasil". "Você fica revoltado. É corrupção em tudo quanto é lugar. É só sacanagem", comentou.

Na entrevista, que voltou a circular ainda na época da eleição presidencial de 2018, o atual titular do Planalto defendeu o fuzilamento de FHC, louvou a ditadura militar, recomendou a sonegação de impostos e disse que "daria golpe no mesmo dia" e fecharia o Congresso se fosse eleito presidente.

"Qualquer governo, eu acho, no caso de uma CPI, tem a tua chance de provar a tua inocência", afirmou.

Hoje acuado pela CPI da Covid, que foi instalada no fim de abril para apurar a responsabilidade do governo por falhas de gestão na pandemia em que mais de 435 mil brasileiros morreram, Bolsonaro atua política e juridicamente para tentar reduzir o desgaste e afastar eventuais consequências.

Na quinta-feira (13), a AGU (Advocacia-Geral da União) apresentou habeas corpus ao STF para que o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello se mantenha em silêncio no depoimento que está marcado para esta quarta-feira (19) e é considerado fundamental pelos senadores.

O ministro Ricardo Lewandowski reconheceu o direito do general do Exército de ficar em silêncio sobre si mesmo, mas decidiu que, nas perguntas que não levem à autoincriminação —como as que envolvem terceiros, inclusive Bolsonaro—, ele não pode se calar e tem a obrigação de falar a verdade.

O advogado Zozer Hardman, que está ajudando Pazuello a se preparar para a ida à CPI, disse ao Painel que o general tem intenção de responder a todas as questões dos senadores.

A secretária do Ministério da Saúde Mayra Pinheiro, conhecida como "capitã cloroquina", também recorreu ao STF para permanecer calada. A corte ainda não se posicionou sobre o pedido da médica defensora do remédio ineficaz para tratar a Covid. O depoimento dela está agendado para quinta (20).

No caso da CPI da década de 1990 que investigou o socorro financeiro do governo FHC a bancos, a decisão favorável a Chico Lopes reforçou o direito de não revelar nada que pudesse prejudicá-lo.

Reconvocado, ele prestou depoimento em agosto daquele ano e se recusou a responder a parte dos questionamentos, alegando que poderia "ter complicações na área legal" se desobedecesse aos advogados. Por fim, a CPI não conseguiu comprovar as acusações contra ele.

O processo contra Lopes e os demais investigados no caso que ficou conhecido como Marka-FonteCindan foi encerrado sem punições em 2016. O economista e os demais réus ficaram livres de condenação após a Justiça Federal no Rio de Janeiro decidir pela prescrição das ações criminais.

Além do próprio Bolsonaro, correligionários já criticaram no passado quem procura a Justiça para garantir a prerrogativa de ficar mudo em comissões de investigação no Congresso.

O deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente, disse em 2016 que usar um habeas corpus preventivo para se manter em silêncio no depoimento era ato de covardia. Ele fez a queixa sentado ao lado do pai, à época também congressista, durante a CPI da Funai, na Câmara.

"Eu fico muito triste em ver esse tipo de atitude. [...] Vagabundo, tá no meio dele, tá com aquela claque comprada lá no Palácio do Planalto, ele fala o que ele quiser. É o valentão. É o maioral. Chega aqui na frente da gente, olha até para baixo", afirmou Eduardo.

"Isso é conduta de covarde. Não tem um pingo de vergonha na cara, fica aí engolindo seco. Fala aí agora a verdade", continuou, dirigindo-se ao representante de uma entidade de trabalhadores rurais que havia sido beneficiado por liminar do STF na ocasião.

Outro aliado que teve uma afirmação resgatada em redes sociais após o pedido de Pazuello ao STF foi o ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Onyx Lorenzoni (DEM-RS). Em uma postagem de 2015 no Twitter sobre a CPI da Petrobras, ele escreveu que "só bandido" se vale do silêncio.

"Cerveró ouviu de mim que em CPI quem se vale do direito 'ficar calado' tem coisa a esconder, só bandido usa disso", disse em referência ao ex-diretor da Petrobras Nestor Cerveró. Hoje membro da tropa de choque bolsonarista, o então deputado fazia oposição ao governo Dilma Rousseff (PT).

Colaborou Matheus Moreira, de São Paulo

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