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Decreto de Bolsonaro pode criar opiniões de segunda classe nas redes sociais

Presidente prepara regra, considerada ilegal, para limitar retirada de posts e perfis por empresas privadas na internet

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Ivar Hartmann

Professor associado do Insper. É mestre (Harvard) e doutor (UERJ) em direito

Circula entre órgãos do governo federal e também online o texto do decreto que pretende criar novas obrigações para as redes sociais. A minuta do decreto, elaborada no Ministério do Turismo, cria uma ilegalidade evidente e faz o governo federal abrir mão de uma oportunidade de grande vitória. O iminente decreto tem um problema de forma e outro, mais grave, de conteúdo.

O Marco Civil da Internet contém uma autorização muito específica para que o Executivo Federal regule a neutralidade da rede. O princípio limita a autonomia de provedores de acesso à internet em decisões sobre priorizar ou até barrar pacotes de dados, ao nível da infraestrutura da rede.

Isso não tem nenhuma relação com decisões que empresas como Facebook, Twitter, YouTube, TikTok e outras tomam sobre conteúdo produzido pelos seus usuários.

Ainda assim, o decreto pretende usar essa autorização do Marco Civil em claro desvio de finalidade, como forma de infiltrar por ali a regulação de redes sociais.

Mesmo em outras partes do Marco, não há nenhuma linha que solicite ou permita ao Executivo ditar regras sobre como as plataformas privadas devem lidar com conteúdo.

Se os dispositivos do decreto chegassem a ver a luz do dia por meio de medida provisória, a forma continuaria um problema, já que não há nenhuma urgência. A gestão privada das postagens de brasileiros em redes sociais já era estudada, discutida e problematizada anos antes do próprio Marco Civil de 2014.

A título de exemplo, a primeira iniciativa do Congresso norte-americano para enfrentar especificamente esse problema já tem um quarto de século.

A parte mais relevante do decreto proíbe que redes sociais, por iniciativa própria, excluam, suspendam ou limitem a divulgação de postagens feitas pelos usuários.

Ocorre que essa é a espinha dorsal do serviço prestado pelas empresas. Elas atraem bilhões de usuários porque entregam a qualquer momento um conjunto de postagens já filtrado de conteúdo abusivo e organizado por critérios de relevância.

A norma viria para impor a empresas privadas a mudança de seu modelo de negócios, gerando custos astronômicos. É uma surpresa que um governo autodenominado liberal prepare um decreto que grita chavismo.

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Segundo o decreto, a proibição de remoção de conteúdo por iniciativa própria da rede social não vale para todos. Se o Executivo Federal –que hoje é bolsonarista, mas amanhã pode ser petista– entende que determinada categoria de opinião é boa, a rede social não pode decidir remover essa manifestação.

Já para os posts que se enquadram na lista de exceções, a censura privada está autorizada. São aquelas manifestações que o governo julga menos relevantes, talvez subversivas.

Um exemplo é a defesa do direito de consumo de maconha. Em poucos dias fará aniversário de dez anos a decisão do Supremo Tribunal Federal que declarou protegidas pela liberdade de expressão a marcha da maconha e outras manifestações tidas como de “apologia” ao uso de drogas ilícitas.

Para essas opiniões, o governo dá o sinal verde para a censura. As redes sociais podem fazer o que quiserem. Mas as redes sociais estariam proibidas de remover post incentivando o uso de cloroquina e outros medicamentos com efeitos colaterais e sem eficácia comprovada contra Covid-19.

Também sofreriam rebaixamento manifestações que contenham nudez. Se uma mulher decide compartilhar sua foto amamentando, o governo entende que a rede social pode censurar à vontade.

Por outro lado, a empresa não pode tocar em qualquer post que ofenda a honra de uma pessoa simplesmente por ela ser negra.

Assim, o decreto governamental cria as opiniões de segunda classe. E o próprio Executivo Federal terá autoridade para avaliar os casos e aplicar multas às redes sociais.

Ao optar por esse caminho, o presidente Bolsonaro perderá uma grande oportunidade. Isso porque as empresas de rede social de fato exercem poder exagerado sobre a liberdade de expressão dos brasileiros.

Adotam regras nem sempre públicas sobre o que é permitido ou não e aplicam essas regras muitas vezes sem oferecer a devida explicação à pessoa censurada.

Também não publicam dados minimamente suficientes sobre o quadro geral dessas remoções e suspensões no Brasil, com quantitativos das motivações e punições aplicadas. É uma caixa preta.

E a única solução constitucionalmente viável é criar garantias processuais para os usuários nos procedimentos de moderação de conteúdo coordenados pelas empresas. Tais garantias precisam valer sem juízo de valor sobre a manifestação em si.

Um pequeno trecho do decreto exige que as redes sociais forneçam informações detalhadas ao usuário quando restringem seu post, bem como garantam ao menos uma via para que ele possa se defender da decisão da empresa.

O governo deveria apoiar projeto de lei no Congresso estabelecendo tais garantias dos usuários e descartar imediatamente todo o texto restante do decreto.

Assim, estaria colaborando para promover um avanço fundamental na proteção da liberdade de expressão de todos os brasileiros, em vez de assinar um decreto que será devidamente derrubado pelo Judiciário no dia seguinte.

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