Diretor do Butantan diz à CPI que Bolsonaro desprezou vacinas; 80 mil mortes poderiam ter sido evitadas

Cálculo baseado em depoimento de Dimas Covas considera que país receberia mais 49 milhões de doses da Coronavac até maio

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Brasília

Em seu depoimento à CPI da Covid, o diretor do Instituto Butantan, Dimas Covas, afirmou que o governo Jair Bolsonaro desprezou em outubro de 2020 uma oferta de 100 milhões de doses da Coronavac que seriam entregues até maio deste ano. Com esse quantitativo, que não veio, o Brasil poderia ter evitado pelo menos 80.300 mortes, segundo cálculo do epidemiologista Pedro Hallal.

Covas disse nesta quinta-feira (27) à comissão no Senado que a oferta não foi fechada em outubro por entraves políticos e burocráticos e que falas de Bolsonaro resultaram na paralisação por três meses do processo de compra da vacina produzida pelo Butantan em parceria com o laboratório chinês Sinovac.

De acordo com Covas, após o fracasso da negociação, nova proposta foi feita ao Ministério da Saúde em dezembro, mas não era mais possível entregar o total de doses até maio, e sim por volta de agosto.

Por fim, o primeiro contrato assinado com o governo federal foi fechado em dezembro e previu a entrega de 46 milhões de unidades até abril deste ano. O segundo foi assinado em fevereiro prevendo a entrega de mais 54 milhões.

O diretor do Instituto Butantan, Dimas Covas, presta depoimento à CPI da Covid
O diretor do Instituto Butantan, Dimas Covas, presta depoimento à CPI da Covid - Pedro Ladeira/Folhapress

O cálculo de Hallal, professor da UFPel (Universidade Federal de Pelotas) e coordenador do maior estudo epidemiológico sobre coronavírus no Brasil, considera que o Ministério da Saúde poderia ter recebido 49 milhões de doses a mais do que os 51 milhões previstos para serem entregues até o final de maio.

O pesquisador estima 81.500 óbitos a menos com margem de erro que varia de 80.300 a 82.700. O Brasil atingiu nesta quinta-feira a marca de 456.753 mortes por Covid.

Segundo declaração de Covas, pelo acordo acertado pelo governo federal com o instituto paulista, 51 milhões de doses da Coronavac terminarão de ser entregues até o final de maio. Logo, o Brasil poderia ter garantido mais 49 milhões de doses nesse período não fossem os impasses.

Se tivesse recebido esse volume a mais teria evitado por volta de 174.642 internações em UTIs (unidades de terapia intensiva), ainda de acordo com cálculo de Hallal.

Em outro cenário, caso o governo federal tivesse aceitado a oferta da Pfizer em agosto do ano passado, cerca de 14 mil mortes teriam sido evitadas com intervalo de confiança entre 5.000 e 25 mil óbitos.

Segundo depoimento à CPI do gerente-geral da farmacêutica na América Latina, Carlos Murillo, 4,5 milhões seriam entregues no país de dezembro a março pela oferta feita ao Brasil no meio do ano passado.

O acordo atual com a Pfizer prevê 100 milhões de doses até o final deste ano. Ou seja, segundo estimativa de Hallal, 95.500 mortes teriam deixado de ocorrer caso o Brasil tivesse fechado mais cedo os acordos com a Pfizer e com o Butantan.

Para o cálculo, o pesquisador usou os seguintes parâmetros: um terço da população com anticorpos, letalidade do coronavírus de 1% e eficácia da vacina de 50% no caso da Coronavac e 94% para a Pfizer.

Com base no índice da população com anticorpos e na letalidade da doença, chega-se a um total de mortes esperado caso o país tivesse recebido as doses previstas. Deste número descontam-se os óbitos que poderiam ter sido evitados com base na eficácia da vacina e chega-se ao resultado.

O diretor do Butantan afirmou à CPI que a primeira proposta de venda de vacinas para o Ministério da Saúde aconteceu em julho de 2020, assim como houve um pedido de recursos para a construção de uma fábrica de vacinas e para a realização de testes clínicos para o imunizante. Nenhuma dessas comunicações recebeu resposta positiva.

Covas também contrariou a fala do ex-ministro Eduardo Pazuello à comissão, de que não recebeu ordens de Bolsonaro para não comprar a Coronavac e que falas do presidente não impactaram a negociação.

O diretor disse que havia a expectativa de assinatura do contrato em outubro, mas as declarações de Bolsonaro foram seguidas pela suspensão nas negociações por três meses.

“Todas essas negociações que ocorriam com troca de equipes técnicas, com troca de documentos, a partir desse momento elas foram suspensas. Quer dizer, houve, no dia 19 [de outubro], um dia antes da reunião com o ministro, um documento do ministério que era um compromisso de incorporação, mas, após, esse compromisso ficou em suspenso e, de fato, só foi concretizado em 7 de janeiro”, afirmou.

O vice-presidente da CPI, senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), divulgou então áudios com a fala de Bolsonaro no dia 20 nos quais afirma: “Já mandei cancelar, quem manda sou eu. Não abro mão da minha autoridade". Em outro áudio reproduzido, Pazuello afirma um dia depois que “é simples assim: um manda e outro obedece”.

Covas afirmou que existe relação entre os fatos. “Infelizmente, essas conversações não prosseguiram porque houve, sim, aí, uma manifestação do presidente da República, naquele momento, dizendo que a vacina não seria, de fato, incorporada, não haveria o progresso desse processo."

“Óbvio que isso causa, sem dúvida nenhuma, uma frustração da nossa parte, mas, enfim, faz parte. E voltamos ao Butantan e continuamos o projeto, quer dizer, isso não foi motivo para nós interrompermos o desenvolvimento da vacina, mas aí já com algumas dificuldades, ou seja, a inexistência de um contrato com o ministério, que é o nosso único cliente, colocava, de fato, uma incerteza em termos de financiamento”, completou.

O diretor do Butantan disse que inicialmente esse contrato em outubro iria prever a aquisição de 100 milhões de doses da vacina, mas em seguida o Ministério da Saúde decidiu reduzir a quantia para 46 milhões. Esse segundo contrato foi suspenso e só reativado em janeiro deste ano.

“Se tivéssemos o contrato com quantitativo maior, de 100 milhões de doses, o cronograma seria outro, poderia ter sido cumprido até maio."

O governo fechou contrato com o Butantan em janeiro. As 100 milhões de doses agora estão previstas para setembro, mas o cronograma pode sofrer alteração por causa das dificuldades de se obter insumos.

Covas afirmou que seria possível que 10 milhões de doses fossem entregues ainda em dezembro de 2020. Vale ressaltar que a autorização para uso emergencial só foi concedida em 17 de janeiro deste ano pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).

Sobre a dificuldade em receber insumos, o diretor do Butantan afirmou que as declarações do presidente e membros do seu governo atrapalham as tratativas para agilizar a liberação pelo governo chinês.

“Não precisa dizer que tem problema de relacionamento. Isso é senso comum. Quer dizer, cada declaração que ocorre aqui no Brasil repercute na imprensa da China. As pessoas da China têm grande orgulho da contribuição que a China dá ao mundo neste momento. Então, obviamente isso se reflete nas dificuldades burocráticas, que eram normalmente resolvidas em 15 dias, e hoje demoram mais de mês para serem resolvidas”, afirmou Covas.

Segundo Covas, já é possível ver resultados da distensão ocorrida após a saída do chanceler Ernesto Araújo, substituído por Carlos França. Teria sido notável uma “evolução na postura” do governo.

Um dos momentos de tensão se deu após o senador governista Marcos Rogério (DEM-RO) reproduzir trecho de um documentário, com um áudio vazado do governador de São Paulo, João Doria (PSDB).

"Ele [grupo chinês] está falando com um cliente de R$ 2,5 bilhões! Só tem um cara que tá se expondo aqui: sou eu. Fundamentalmente, sou eu. Eu tô no primeiro plano dessa história. Publicamente. Ainda sofrendo ataque do Bolsonaro, bolsominion, bolso não sei do quê", afirma Doria, no áudio.

Rogério apontou que o vídeo seria uma prova do uso político que Doria faz da vacina. O presidente da CPI, senador Omar Aziz (PSD-AM), saiu em defesa do governador paulista.

Aziz o cortou para dizer que a fala foi uma demonstração de um agente político que estava em busca de vacinas. Rogério ficou irritado e pediu a Aziz que controlasse sua "sanha" e depois o presidente também foi acusado de atuar como “advogado de São Paulo”.

O relator, Renan Calheiros (MDB-AL), afirmou após a sessão que os próximos depoimentos já devem contar com um serviço de checagem, para evitar mentiras e inconsistências de depoentes e senadores.

Renan também comentou a convocação do ex-ministro Pazuello, afirmando que terá um caráter pedagógico. Segundo o senador, servirá para que esse "maluco" não volte a "delinquir", em referência à participação do general, sem máscara, em evento com Bolsonaro no Rio de Janeiro no último fim de semana.

Na semana que vem, haverá oitivas para discutir a cloroquina. O primeiro deles será da médica Nise Yamaguchi, apontada como conselheira de Bolsonaro.

Também foram definidos os depoimentos dos primeiros representantes dos estados. O primeiro será o ex-governador do Rio de Janeiro Wilson Witzel. Entre o fim de junho e início de julho estão programadas as oitivas de Wilson Lima (PSC), do Amazonas, Helder Barbalho (MDB), do Pará, e Wellington Dias (PT), do Piauí.

Em uma derrota para o Planalto, foi agendada a oitiva do assessor internacional da Presidência Filipe Martins e do empresário Carlos Wizard, que seriam parte do que vem sendo apontado como "ministério paralelo".

Cronologia da Coronavac

Out.20 - Pazuello anuncia acordo com SP por vacina e é desautorizado por Bolsonaro
Em 20 de outubro, o então ministro anunciou acordo para a compra de 46 milhões de doses. No dia seguinte, o presidente escreveu nas redes, em maiúsculas: "NÃO SERÁ COMPRADA".
Segundo Dimas Covas, oferta total de 100 milhões de doses não foi fechada em outubro por entraves políticos e burocráticos

Dez.20 - Nova proposta de acordo
De acordo com o diretor do Butantan, após o fracasso das tratativas em outubro, nova proposta foi feita ao Ministério da Saúde, mas não era mais possível entregar a totalidade das doses até maio, mas, sim, por volta de agosto.

Na CPI, Covas afirmou que seria possível entregar 100 milhões de doses até maio deste ano, se não houvesse interrupção nas negociações em outubro

Segundo cálculo do professor Pedro Hallal, da Federal de Pelotas, o Brasil teria evitado ao menos 80.300 mortes até maio deste ano se o governo Bolsonaro tivesse fechado contrato em outubro de 2020

Jan.21 - Saúde fecha acordo para 100 milhões de doses
No começo do mês, Pazuello afirmou que a pasta havia fechado acordo com o Butantan. Na época, a previsão era de que 46 milhões de doses fossem entregues até abril. O restante, 54 milhões, seria repassado para o governo federal ao longo do ano. Até a última terça (25), 47,2 milhões de doses foram entregues, cumprindo, portanto, o previsto em um primeiro contrato

Jan.21 - Primeira dose administrada
A primeira aplicação da vacina foi feita no dia 17 de janeiro, em São Paulo, minutos depois de a Coronavac ter seu uso emergencial aprovado pela Anvisa

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.