Em depoimento à CPI da Covid, o ex-chanceler Ernesto Araújo deixou claro que o presidente Jair Bolsonaro orientou o Itamaraty a viabilizar a compra de cloroquina, mas não deu instruções para o ministério buscar e negociar vacinas contra a Covid-19.
O Brasil, ao contrário da maior parte dos países do mundo, não usou sua política externa para tentar garantir fornecimento de imunizantes, cuja escassez impede o avanço da vacinação brasileira.
Em sua fala, Ernesto indicou que simplesmente seguia ordens de Bolsonaro. “Nunca recebi orientações [do presidente] para acelerar contatos com fornecedores de vacinas”, disse o chanceler à comissão.
Já para obter hidroxicloroquina, medicamento sem comprovação científica contra a doença, ou buscar remédios em estágio inicial de testes em Israel, todo o Itamaraty foi mobilizado —e Ernesto confirmou que houve orientações do próprio presidente Jair Bolsonaro.
Apesar de ter culpado o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello pela decisão de pedir ao consórcio Covax Facility vacinas suficientes para imunizar apenas 10% da população brasileira, Ernesto deixou patente a omissão do Itamaraty, que funcionava como se não houvesse uma pandemia matando centenas de milhares de pessoas no Brasil.
Indagado sobre o papel do Itamaraty na negociação para a compra dos imunizantes da AstraZeneca, Ernesto admitiu que foi "um apoio secundário, logístico, operacional”, e que não houve participação “da substância da negociação”
Questionado sobre o que fez para auxiliar na compra da vacina chinesa Coronavac, que responde por 85% das doses administradas no Brasil até agora, Ernesto disse: “Vacinas Coronavac estão sendo importadas pelo Instituto Butantan, e as tratativas, segundo entendo, são diretamente entre o Instituto Butantan e os fornecedores chineses. Pelo menos durante a minha gestão foi assim”.
O ex-chanceler disse que não entrou em contato com nenhum fabricante de vacina, apenas recebeu o ex-deputado Rogerio Rosso, representante da União Química, que espera autorização da Anvisa para fabricar a vacina russa Sputnik.
Durante o ano de 2020, o Itamaraty limitou-se a pedir, de forma genérica, que postos monitorassem a produção de vacinas e remédios para a Covid no mundo.
O ex-chanceler não explicou por que o Itamaraty ignorou as primeiras reuniões da Covax Facility. Tampouco explicou por que o Brasil foi um dos últimos países a aderir ao consórcio, em setembro. Limitou-se a dizer que o momento de adesão não influenciava nas entregas, e que há atrasos em todos os países.
Ernesto afirmou que, quando recebeu a carta em que a Pfizer oferecia milhões de doses de sua vacina e que, segundo depoimentos na CPI, ficou ao menos dois meses sem nenhuma resposta, ele não achou necessário comentar sobre a carta com Bolsonaro, porque presumiu que ele já sabia.
Alguns dias depois, em 21 de setembro, Ernesto foi até Roraima se reunir com o secretário de Estado americano, Mike Pompeo. Na época, o Brasil já acumulava cerca de 130 mil mortes por Covid.
Ernesto falou com Pompeo sobre a Pfizer ou alguma promissora vacina americana, aproveitando-se da proximidade entre Bolsonaro e o então presidente Donald Trump? “Não, porque não havia vacinas totalmente desenvolvidas e aprovadas, não havia perspectiva concreta para exportação de vacinas”, disse.
Não é o que mostra a carta da Pfizer e a atuação de dezenas de outros países, que já estavam ativamente negociando para comprar vacinas.
A grande aproximação com os EUA rendeu frutos, garantiu Ernesto. Mas não em vacinas. Em março de 2021, ele relatou, o Itamaraty comunicou aos EUA seu interesse pelas vacinas daquele país, que tinha quantidade superior à necessária para vacinar sua população.
Os americanos anunciaram que enviariam 4 milhões de doses da vacina AstraZeneca ao México e ao Canadá. Não mencionaram o Brasil.
Defendendo sua política, Ernesto afirmou que, não fossem suas gestões junto ao chanceler da Índia, o Brasil não teria sido o primeiro país a receber vacinas da Índia, em 22 de janeiro de 2021. Mas não foi o primeiro. Maldivas e Butão receberam dia 20, e Bangladesh, dia 21.
E isso se deu no contexto da corrida da vacina. Foi só com o início da vacinação com a Coronavac, a “vacina do Doria”, que o governo federal –e o Itamaraty– começaram a se mexer.
Ernesto disse que seu ministério também foi responsável por negociar insumos com a China. O que é verdade, mas, de novo, só aconteceu a partir de dezembro de 2020, com a corrida da vacina, e com a falta dos remédios do “kit intubação”.
No exercício das relações diplomáticas, Ernesto também fez opções peculiares. “Por que você não mobilizou o Itamaraty para comprar a outra vacina chinesa, a da Sinopharm?”, perguntou a senadora Kátia Abreu (PP-TO), que foi pivô da demissão do chanceler, em março, e moeu Ernesto durante a CPI.
Em vez disso, Ernesto estava ocupado enviando cartas para o chanceler chinês, pedindo a cabeça do embaixador Yang Wanming, que tinha entrado em bate-boca com o deputado Eduardo Bolsonaro após o filho do presidente atacar a China pelas redes sociais.
Ernesto, na CPI, negou que sua gestão tivesse um viés anti-China, e negou que o termo “comunavírus”, usado em um de seus artigos, fosse uma ofensa ao país asiático.
Funcionários da política externa da China têm outra opinião. Fonte ligada à política externa, indagada se a expressão comunavírus é ofensiva, afirmou à Folha: “claro”. Confirmou também que a relação entre os dois países melhorou muito após a saída de Ernesto, dizendo que muitas narrativas do ex-chanceler, que afirmava não vender a alma para vender commodities para a China, e menções a país tecnototalitário, “são nocivas para as relações”.
Quando a Venezuela enviou oxigênio para o Amazonas, onde morriam pessoas sufocadas, em janeiro, Ernesto também não viu necessidade de um gesto diplomático. Ele não agradeceu ao governo venezuelano pela doação.
Já o empenho pela cloroquina, como mostrou a Folha, foi bem maior. O Itamaraty enviou telegramas à Índia a partir de março para tentar garantir a importação do medicamento e insumos. E continuou acionando o corpo diplomático, em telegramas em junho, para garantir o fornecimento de hidroxicloroquina, mesmo depois de sociedades médicas já terem desaconselhado o uso e apontado efeitos colaterais graves.
Ernesto também relatou que, a pedido de Bolsonaro, organizou telefonema do presidente com o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi. Na conversa, Bolsonaro pediu a liberação da cloroquina.
Em seu depoimento, Ernesto admite que “não houve plano único, uma política” para o combate da Covid. “Diretrizes foram dadas em diferentes momentos", afirmou. Mas, segundo ele, "o fato de não ter havido política não significa que foi um improviso”.
E lava as mãos. “O Itamaraty executou tudo o que nos foi demandado para compra de vacinas”, disse. Segundo ele, o ministério só foi orientado por Bolsonaro a agir quando houve atraso no envio das vacinas da Índia em janeiro, em plena corrida da vacina.
Ou seja, se ele não fez nada, é culpa de quem? “O Itamaraty não age de maneira autônoma.”
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.