Noventa porcento dos entrevistados na última pesquisa Datafolha disseram que o Brasil tem jeito, e 70% afirmam sentir orgulho do país. Minha primeira reação ao tomar conhecimento desses números foi pensar que meus compatriotas perderam o juízo.
É impossível, afinal, ignorar que vivemos sob uma pandemia, na qual nosso desempenho como sociedade dá motivos para muitos sentimentos, mas certamente não o de orgulho.
A população brasileira corresponde a 2,7% da mundial, mas colecionamos 12,6% dos óbitos por Covid-19 oficialmente registrados no planeta.
Ao analisar mais detidamente os números e as séries históricas, percebi que estava fazendo uma leitura equivocada do fenômeno, que tem muito mais a ver com identidade (eu tenho fé no Brasil e no brasileiro) do que com circunstâncias.
A pergunta sobre se o Brasil tem jeito começou a ser feita em 1996. Sempre trouxe índices bastante altos de respostas afirmativas, variando de 86% a 90%.
Já a série sobre o orgulho de ser brasileiro teve início em 2000. As respostas ufanistas se mantiveram na faixa dos 80% até 2015, quando tem início um lento declínio que se torna bem pronunciado em junho de 2017 e depois voltam a subir, até alcançar o patamar dos 70%.
A minha hipótese para explicar a curva são as denúncias de corrupção. Elas ganharam corpo ao longo de 2015, foram reforçadas pelo impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, e culminaram com os escândalos do governo Temer, em 2017.
Foi o único instante em que as respostas despatrióticas quase empataram com as nacionalistas. Depois, à medida que a corrupção foi se tornando notícia velha, os índices de patriotismo foram retornando ao nível basal.
Até existe uma correlação negativa entre postura oposicionista e orgulho, mas ela não basta para apagar o aspecto identitário. Entre os que avaliam positivamente o governo Bolsonaro, as respostas orgulhosas ficaram em 87%; já entre os que o avaliam negativamente, bateram em ainda impressionantes 61%.
A analogia que me ocorre é com a felicidade. O que as pesquisas mostram é que a felicidade é em larga medida hereditária e se apresenta em níveis mais ou menos constantes. Eventos externos, é claro, importam, mas de forma menos dramática e duradoura do que se imagina.
Cientistas avaliaram o impacto de deficiências físicas causadas por acidentes e concluíram que, num primeiro momento, elas reduzem bastante o grau de felicidade.
Mas, com o passar do tempo, ela volta a elevar-se, até estacionar em níveis só um pouco inferiores aos registrados antes do acidente. É o que os psicólogos chamam de “adaptação hedônica”.
Obviamente, a inversa também vale. Se o sujeito ganha na loteria, ele fica contente por um tempo, mas logo seus níveis de satisfação com a vida voltam a se aproximar daqueles anteriores à sorte grande.
Se, à luz dessas considerações, os resultados do Datafolha soam menos malucos, ainda falta explicar por que o brasileiro parece se comover mais com a corrupção do que com o fracasso na pandemia. Em todos os sistemas éticos que conheço, a vida é tida como mais importante do que o dinheiro.
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