Senadoras 'nervosas' na CPI da Covid escancaram machismo no Congresso

No primeiro mês da comissão, mulheres do Senado foram interrompidas e tachadas de agressivas pelos colegas

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Rio de Janeiro e Brasília

Não há nada de original no machismo, e a CPI da Covid está aí para provar. Vários expedientes comuns na tentativa de inferiorizar uma mulher deram as caras nas duas primeiras semanas da comissão, que já nasceu em dívida com a paridade de gênero.

"Eu gostaria que vossa excelência, por favor, que vossa excelência ou o senhor não me interrompesse porque é uma linha de raciocínio..."

Esta é a senadora Simone Tebet (MDB-MS), pedindo ao depoente do dia, o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, que a deixe completar a fala. Na mesma quinta-feira (20), Tebet, que lidera a bancada feminina no Senado, teve seu discurso atravessado ao menos 11 vezes pelos homens na sala.

Senadoras discutem participação de mulheres na CPI; Ciro Nogueira debate com Simone Tebet (de pé), Soraya Thronicke (ao lado) e Eliziane Gama (na ponta) - Jefferson Rudy/Agência Senado

Há um jargão em inglês para o que general Pazuello fez com Tebet: "Manterrupting", junção das palavras "homem" e "interrompendo". O militar é reincidente nesta prática corriqueira de homens contra mulheres, e um episódio ilustra bem o espírito da coisa.

O então ministro da Saúde do governo Jair Bolsonaro se encontrou no dia 18 de janeiro com governadores. Escutou os homens em silêncio. Quando foi a vez de falar da governadora do Rio Grande do Norte, Fátima Bezerra (PT), achou razoável intervir várias vezes.

As 11 senadoras representam 13,5% da Casa, fatia quase quatro vezes menor do que a proporção feminina na população. No colegiado destacado para investigar malfeitos no combate à pandemia, o número inicialmente caiu para zero. Entre os 18 titulares e suplentes, nenhuma mulher.

As comissões são compostas por indicação dos partidos. No caso da CPI, após a composição ser firmada só com homens, as senadoras pleitearam o direito a uma representação que lhes permitisse discursar e fazer perguntas, ainda que não possam votar ou pedir documentos.

O combinado foi aceito pelo presidente da CPI, Omar Aziz (PSD-AM), mas nem todos os homens do grupo ficaram alegres com a ideia.

No primeiro dia do acordo, a senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA) ia começar a falar quando foi cortada por um bate-boca entre Aziz e o senador Ciro Nogueira (PP-PI), da base governista.

O piauiense negou que houvesse um arranjo para garantir a participação feminina e disse que, se não havia mulheres na comissão, o problema era dos partidos. "Se foi um erro das lideranças não indicarem as mulheres, a culpa não é nossa", afirmou Nogueira.

O líder do governo no Senado, Fernando Bezerra (MDB-PE), foi mais longe e argumentou que a fala das senadoras eleitas não poderia acontecer "ao arrepio da representatividade que o povo elegeu" e que dar voz à bancada seria "rasgar o regimento".

Senadoras ouvidas pela Folha contam que os colegas pararam com os ataques públicos depois que Aziz se reuniu com os membros da comissão. Nos bastidores, porém, as queixas continuam.

A CPI EM CINCO PONTOS

  • Foi criada após determinação do Supremo ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG)

  • Investiga ações e omissões de Bolsonaro na pandemia e repasses federais a estados e municípios

  • Tem prazo inicial (prorrogável) de 90 dias para realizar procedimentos de investigação

  • Relatório final será encaminhado ao Ministério Público para eventuais criminalizações

  • É formada por 11 integrantes, com minoria de senadores governistas

Na quarta (19), foi o próprio presidente da CPI que protagonizou uma cena tida como machista: dar a entender que uma mulher, quando fala firme, está nervosa.

Eliziane Gama chamou de mentiroso o general que mentiu repetidamente em seu depoimento, como ao afirmar que não recebeu ordem de Bolsonaro para não comprar a vacina chinesa Coronavac.

"O senhor já mentiu demais nesta comissão, ministro, mas muito mesmo. Eu não tenho nem tempo para elencar aqui todas as mentiras que vossa excelência cita a esta comissão", disse a senadora.

Aziz, então, interrompeu Eliziane e sugeriu que ela pegasse mais leve com Pazuello. "Sem agressão, sem, sabe... Eu a conheço, eu gosto tanto da senhora. Por favor."

Ela respondeu de bate-pronto: "Presidente, eu não sou agressiva. Vossa excelência sabe que eu não sou agressiva, eu estou sendo enfática apenas". De novo, o colega amazonense: "Não, não, você é um amor de pessoa. Eu tenho um carinho enorme por você".

Leila Barros (PSB-DF) passou por constrangimento parecido na sessão de 12 de maio. Ela queria mostrar a entrevista à Veja com o ex-secretário de Comunicação da Presidência Fabio Wajngarten, que depunha no dia e negava pontos que havia dito na conversa com o jornalista.

O governista Marcos Rogério (DEM-RO) falou por cima dela. Quando Leila insistiu, o colega rebateu.

Marcos Rogério: "Calma, senadora! Não fique nervosa".

Leila Barros: "Nervosa..."

Eliziane Gama: "Ela não está nervosa".

Omar Aziz: "Cuidado! Cuidado!".

Uma imagem, diz Leila à reportagem, vale mais do que mil palavras. "Quem viu ali, o 'não fique nervosa'... Eles podem, né? [Os senadores] se alteram ao máximo, um grau altíssimo de desequilíbrio, e eles não estão nervosos. Ficar nervoso é muito 'mulherzinha'."

"Gritar é coisa de macho. Mulher, quando fala alto, é histérica", ironiza a senadora Kátia Abreu (PP-TO), que na véspera havia travado um embate enfático —não agressivo— com o ex-chanceler Ernesto Araújo, que para ela deixou de ser diplomata para se tornar um "Ernestominion".

Depois dos episódios de Eliziane e Leila, Tebet se reuniu com líderes partidários. Na conversa, segundo interlocutores, afirmou que os homens estão "passando um mau exemplo", e que esse tipo de comportamento mancha a imagem do Senado.

O mau exemplo continuou no dia seguinte, quando ela foi interrompida por Pazuello, mas também por outros parlamentares da Casa.

Há, entre algumas integrantes da bancada, o receio de falar sobre o tema. As senadoras temem que a discussão poderia ser tomada como "vitimismo" da parte das mulheres atacadas.

"Vocês estão vendo, na CPI, o que a gente infelizmente passa todos os dias na representação política brasileira", diz à Folha a senadora Eliziane. "Isso acontece nas reuniões internas, nas outras comissões."

Ela, que é líder de seu partido, afirma que seu bloco não pôde indicar uma mulher porque possui apenas uma vaga, e ela foi para o autor da CPI, Randolfe Rodrigues (Rede-AP). "Não faria sentido ele não estar na comissão, mas outros partidos poderiam ter indicado", diz.

O primogênito do presidente Bolsonaro, senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), chegou a achincalhar a ausência de indicações femininas no dia em que o Senado instalou a comissão que investiga possíveis omissões e crimes do governo do seu pai.

"Presidente, bom dia a todos. Em primeiro lugar, acho que as mulheres já foram mais respeitadas e mais indignadas, não é?", disse no dia 27 de abril. "Estão fora da CPI, não fazem nem questão de estar nela e se conformam em acompanhar os trabalhos a distância."

Não é só na CPI que o machismo vem à tona. Em 2020, Tebet disse à Folha que os homens do Senado chamam suas colegas de grossas quando elas se posicionam. "Como se mulheres não pudessem falar alto como os homens. Até quando você se posiciona de uma forma técnica, dizem ‘ah, é a professora’".

Leila diz que a bancada feminina fez um pacto para que se revezem na CPI, de forma que haja sempre uma mulher na sessão presencial. "Não vamos recuar. Parece que falta aquela coisa: somos homens e mulheres, conquistamos esse espaço da mesma forma. Quando mulher se põe em igualdade de peso, sua fala, para o homem, é agressiva. Não queremos dominar, queremos caminhar junto."

Sem que vossas excelências interrompam a linha de raciocínio delas.

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