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Coronavírus CPI da Covid

D-dímeros do senador anulam seriedade de WhatsApp emprestada à cloroquina

Desmonte de Nise Yamaguchi na CPI, contudo, não deve reverberar nos grupos em que é heroína

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São Paulo

A CPI da Covid tem se notabilizado por alternar questionamentos duros a inquisições flácidas, usualmente amparadas por frágeis argumentos técnicos de lado a lado.

Nise Yamaguchi durante seu depoimento à CPI da Covid, no Senado
Nise Yamaguchi durante seu depoimento à CPI da Covid, no Senado - Pedro Ladeira/Folhapress

Desta forma, saíram-se bem de seus depoimentos, de formas distintas, tanto o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta quanto seu sucessor Eduardo Pazuello.

Nesta terça (1º), Nise Yamaguchi ofertou um espetáculo diferente e, de certa forma, bastante mais revelador de uma faceta central do bolsonarismo como fenômeno sociopolítico.

Emergiu a imagem daquele médico da família em que você sempre confiou e que resolveu apoiar o capitão reformado, talvez por ojeriza ao PT antes de tudo.

A médica, verdadeira "Doutora Cloroquina" no enredo da CPI, aparentemente nem votou em Bolsonaro, mas é ainda mais que isso.

Irmã de uma candidata bolsonarista derrotada à Câmara dos Deputados, aproximou-se do grupo no poder e ganhou ouvidos com sua seriedade aparente e fama de oncologista respeitada.

Como a cópia de mensagem que ela entregou à comissão mostrou, ao sugerir que mexer na bula da hidroxicloroquina poderia expor o presidente, a médica estava envolvida claramente no tracejar de estratégia do Planalto na crise.

Os evasivos vaivéns da médica, mesmo apoiados pela tropa de choque governista, não convenceram acerca de sua suposta ausência de conhecimento do que acontecia nas reuniões sobre o caso.

Mesmo quando ela disse que achava não ter sido convidada para o ministério por ser "muito ocupada", aí há a traição de uma proximidade que de resto ela tentou negar.

A tentativa frustrada de fugir do inescapável da relação com Bolsonaro também foi reforçado pela lúdica contraposição obrigada pelo Renan Calheiros (MDB-AL) de falas gravadas da médica e sua posição atual.

A CPI preparou-se para o óbvio: Nise usaria seu discurso ponderado, currículo (colaborou com o Lula, esquerdistas!) e tecnicidade para lustrar a defesa da cloroquina a ser distribuída pelo exército virtual de Bolsonaro.

Com isso, Renan tratou de grelhar a depoente em fogo médio, com uma intervenção ao estilo lacrador do presidente Omar Aziz (PSD-AM), que perdeu a paciência com o jogo da doutora e sua "voz calma".

Mas a cereja do bolo veio no meio da oitiva, quando ela foi exposta a um par, o médico e senador Otto Alencar (PSD-BA).

Estrela de outros depoimentos, o parlamentar expôs o cerne da inconsistência de Nise como figura referencial, ao explicitar que as "300 pessoas" doentes com Covid-19 que ela diz ter curado com cloroquina são apenas um número que se joga em grupos de WhatsApp.

Alencar exigiu ver fichas, enfatizando qual o "dedímero" dos pacientes, para pasmo de seus colegas leigos. Ele questionava o exame de D-dímero, ou Dímero-D, marcador de coagulação que serve para avliar risco de morte dos pacientes com a peste.

Depois, o baiano tratou de desmontar a suposta especialização de Nise. Ela pode ser uma excelente oncologista, como seu histórico e relatos afirmam, mas patinou confrontada com questões simples sobre infectologia.

Aos escombros deixados por Alencar sobrou uma terraplanagem na intervenção de Alessandro Vieira (Cidadania-SE), deixando claro que a médica se ampara em estudos há muito desacreditados.

Essa era uma questão central: quando a Covid-19 surgiu, se descobrissem que o uso hinduísta da urina e do esterco bovinos funcionasse contra o vírus, seria grande notícia.

Explorar possibilidades era obrigação da comunidade científica, tanto que a Organização Mundial da Saúde demorou quase um ano para passar a rejeitar a hidroxicloroquina —até então, o medicamento era apenas considerado sem eficácia comprovada.

O verniz científico que a doutora e congêneres dão a grupos de WhatsApp bolsonarista teve sua qualidade exposta, embora por óbvio é bastante duvidoso que os aderentes da seita darão ouvidos à realidade. Ficarão com os inacreditáveis trechos em que ela compara a importância de vacinas à do ineficaz tratamento precoce.

Se não servir para mais nada, o conteúdo da sessão ao menos terá valor histórico quando for dissecada a peculiar era em que vivemos.

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