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Devassa em dados da Receita teve pico em ano de pesquisa sobre entorno de Bolsonaro

Apurações especiais nos sistemas do Fisco quase dobraram no ano passado, quando governo analisou quem acessou dados de pessoas próximas ao presidente

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Rio de Janeiro

A Receita Federal registrou um pico nos pedidos de devassas e alterações em seus sistemas de dados no mesmo ano em que pesquisou os acessos aos dados fiscais de pessoas no entorno do presidente Jair Bolsonaro.

De acordo com dados do Fisco, praticamente dobraram em 2020 as solicitações de apurações especiais ao Serpro (Serviço Federal de Processamento de Dados) e à Dataprev, órgãos responsáveis pela guarda das informações dos sistemas da Receita.

Foram 867 demandas de apurações especiais no ano passado, contra uma média de 450 nos cinco anos anteriores. Este ano, o ritmo voltou próximo ao habitual, com 201 solicitações até o fim de maio.

Segundo as informações da Receita, obtidas pela Folha por meio da Lei de Acesso à Informação, 99 pedidos apresentaram resultado “diferente de zero”, ou seja, com informações relevantes. É quase quatro vezes a média dos cinco anos anteriores (27).

Como a Folha revelou na semana passada, a Receita fez uma devassa para tentar identificar investigações em dados fiscais do presidente Jair Bolsonaro, de seus três filhos políticos, de suas duas ex-mulheres, da primeira-dama, Michelle, e de Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio Bolsonaro.

O levantamento foi muito mais amplo do que apontado meses atrás como um movimento apenas da defesa de Flávio contra a investigação da "rachadinha" tocada pelo Ministério Público do Rio de Janeiro.

Atingiu, na verdade, todo o entorno familiar do presidente, incluindo suas duas ex-mulheres com quem dividiu seu patrimônio e que não são alvo da investigação contra o senador. O rastreamento abrangeu 22 sistemas de dados da Receita no período de janeiro de 2015 a setembro de 2020.

A Receita afirmou que não vai se manifestar sobre o aumento nos pedidos de apurações especiais, bem como na devassa sobre os acessos aos dados de pessoas no entorno do presidente.

O aumento nas solicitações de apurações especiais fez com que o gasto com o serviço também disparasse. A Receita gastou R$ 4,8 milhões com o serviço, valor superior à soma dos cinco anos anteriores.

A pesquisa sobre o entorno do presidente custou R$ 490,5 mil ao Fisco, que não informou, porém, o volume de CPFs analisados por meio das apurações especiais —cada demanda pode contar mais de um número. O teor das demandas também é mantido sob sigilo.

As apurações especiais têm como objetivo extrair ou alterar informações nas bases de dados da Receita mantidas pelo Serpro e Dataprev. Elas são utilizadas quando o sistema do próprio Fisco, acessado pelos auditores, não é capaz de executar determinada tarefa.

A ferramenta é o meio mais eficaz para se identificar todos os “logs”, como são chamados os arquivos sobre as consultas aos sistemas do Fisco.

Os “logs” indicam a data e o nome do auditor responsável pela consulta aos dados fiscais dos contribuintes. Caso não haja justificativa para a atuação, o servidor pode ser punido pelo acesso imotivado.

O resultado da apuração especial, porém, também permite identificar investigações legais ainda em sigilo contra o dono do CPF analisado.

A mobilização da estrutura do governo em favor de Flávio foi revelada em outubro pela revista Época. Na ocasião, soube-se que as advogadas Juliana Bierrenbach e Luciana Pires recorreram à Receita e ao Serpro para tentar descobrir em que momentos os dados fiscais do senador e de sua mulher foram acessados.

O motivo manifestado pela defesa era o de que o relatório do Coaf (órgão federal de inteligência financeira) que originou a investigação das “rachadinhas” continha informações com detalhes cuja origem não eram os bancos, com os quais o órgão troca informações. Os dados viriam, na verdade, da Receita Federal.

A suspeita da equipe de Flávio era que ele tenha sido vítima de prática semelhante à revelada por mensagens obtidas pelo Intercept Brasil e analisadas pela Folha e pelo site, na qual dados fiscais sigilosos eram obtidos informalmente por procuradores da Operação Lava Jato.

A prática é conhecida como "fishing expedition", no qual investigadores acessam dados fiscais de uma pessoa sem justificativa legal em busca de possíveis irregularidades.

As advogadas também acionaram o Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República sob a justificativa de que as supostas fraudes atingiam um membro da família de Bolsonaro. À época, o órgão afirmou que, após análise, concluiu que não tinha atribuição sobre o caso e não realizou nenhuma ação.

A defesa de Flávio Bolsonaro afirma que não recebeu o resultado da apuração especial sobre o senador e sua mulher, Fernanda, e declarou que vai recorrer à Justiça para obtê-los.

Os advogados dizem que não solicitaram a realização das demais pesquisas no entorno do presidente. A Receita não informou o responsável pela solicitação da devassa.

Ao negar oficialmente o acesso ao resultado da pesquisa, a Receita afirmou aos advogados do senador que os “logs” são sigilosos e não podem ser fornecidos com base na Lei de Acesso à Informação.

“Revelar os logs de acesso a determinada declaração ou dado fiscal, ou para que fim foi acessado, ou quem o acessou, sem motivação contundente, é revelar as ações da Administração Tributária no desempenho de suas funções legais, bem como a própria informação protegida por sigilo fiscal.”

A Receita também menciona parecer da CGU (Controladoria-Geral da União) que aponta risco de assédio sobre os auditores fiscais caso as informações dos “logs” fossem reveladas.

“Os servidores estariam expostos à cooptação criminosa de pessoas físicas e jurídicas, visando à obtenção de informações pertinentes não somente à sua situação fiscal e tributária própria e de terceiros, mas de eventuais procedimentos investigativos em curso na RFB”, afirma o parecer.

A tese sobre acesso imotivado a dados de Flávio foi inspirada num grupo de cinco auditores fiscais do Rio de Janeiro suspeitos de enriquecimento ilícito. Eles fizeram uma denúncia sobre o tema ao Sindfisco (sindicato nacional dos auditores fiscais)

Contudo, os auditores que usaram esta tese na Justiça têm sofrido sucessivas derrotas na tentativa de anular os atos de investigação sob a alegação de que tiveram seus dados acessados ilegalmente.

Entenda as apurações especiais

O que são as apurações especiais? As apurações especiais têm como objetivo extrair ou alterar informações nas bases de dados da Receita mantidas pelo Serpro e Dataprev. Elas são utilizadas quando o sistema do próprio Fisco, acessados pelos auditores, não são capazes de executar determinada tarefa

O que é possível saber a partir delas? Um dos principais objetivos das apurações especiais é identificar todos os “logs”, como são chamados os arquivos sobre as consultas aos sistemas do Fisco. Os “logs” indicam a data e o nome do auditor responsável pela consulta aos dados fiscais dos contribuintes

Qual a relação com o caso de Flávio Bolsonaro? A defesa do senador solicitou à Receita uma apuração especial para identificar os auditores que acessaram o sistema do Fisco para analisar os dados fiscais dele e de sua mulher. A suspeita dos advogados é de que houve acesso indevido para alimentar, de forma ilegal, o relatório do Coaf que motivou abertura da investigação do caso das "rachadinhas"

O que a Receita fez? A Receita solicitou apuração especial para identificar o acesso a dados não apenas do senador e sua mulher, mas de todo o entorno familiar do presidente Jair Bolsonaro

A atuação da Receita ajudou Flávio? A defesa do senador diz que não recebeu o resultado da apuração especial que solicitou e declarou que vai recorrer à Justiça para obtê-lo

Por que houve aumento no número de apurações especiais? A Receita não explicou a razão do aumento

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