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Mudar lei de improbidade é necessário, mas projeto tem pontos mal colocados, diz ex-controlador da União

Para ex-ministro da CGU Jorge Hage, restrição na apresentação de novas ações parte de premissa equivocada

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São Paulo

Ministro que passou mais tempo à frente da CGU (Controladoria-Geral da União) desde que o órgão foi criado em 2001, o advogado Jorge Hage, 83, diz concordar com a necessidade de alterar a atual Lei de Improbidade Administrativa, modificada em um controverso projeto aprovado pela Câmara dos Deputados na semana passada.

Mas afirma que não assinaria embaixo de todos os pontos da proposta e reclama da restrição estabelecida pelos deputados de que apenas o Ministério Público poderá abrir ações desse tipo.

Hoje, órgãos públicos e entes lesados também podem dar início a processos dessa modalidade para responsabilizar gestores que cometeram irregularidades à frente dos cargos.

O projeto aprovado na Câmara ainda será analisado pelo Senado. A proposta foi muito criticada por procuradores e promotores, que veem uma tentativa de desregulamentar o combate à corrupção.

Diferentemente do que ocorre na esfera penal, a Lei de Improbidade Administrativa não prevê a possibilidade de prisão, mas sim de perda de função pública, suspensão de direitos políticos e de ressarcimento de prejuízos.

Ela trata de situações em que o agente público provoca prejuízos aos cofres públicos, enriquece ilicitamente ou viola princípios da administração pública.

O projeto para modificá-la foi apresentado em 2018 e debatido por especialistas, incluindo o próprio Hage, que participou de audiência na Câmara há dois anos.

Para o ex-ministro, que também foi deputado constituinte e juiz no Distrito Federal, ao fixar a necessidade de comprovar a intenção de cometer uma ilegalidade a nova lei trará mais segurança jurídica. Esse é o principal ponto do novo texto, aprovado em regime de urgência na Câmara.

O apoio ao projeto uniu diferentes correntes políticas, como bolsonaristas, petistas e o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). Entre os partidos, só Novo, PSOL e Podemos foram contrários.

A nova versão da lei dificultará a punição de casos de improbidade? A meu ver, não é bem assim. Algumas das inovações que vêm na lei aprovada já vinham sendo construídas na jurisprudência [consolidada em tribunais superiores].

Em outros pontos, são questões que vinham sendo cobradas há muito tempo pela doutrina. Coisas que de fato geram muita insegurança jurídica e causas do chamado "apagão de canetas": a recusa de pessoas qualificadas, íntegras, sérias, a ocupar nenhuma função pública porque de repente podem vir a ser réus por improbidade, sem terem cometido nenhum ilícito capaz de justificar as penas gravíssimas que essa lei traz.

O ministro Teori Zavascki, quando era do STJ [Superior Tribunal de Justiça], definiu em um julgamento que vem sendo citado até hoje nas decisões: uma coisa é ilegalidade e outra coisa é improbidade administrativa.

Improbidade não é qualquer ilegalidade, qualquer descumprimento de lei. É uma ilegalidade qualificada, tipificada pela presença do elemento subjetivo da intenção de causar lesão ao erário, de enriquecer ilicitamente.

O STJ se ajustou em uma posição intermediária, admitindo o dolo ou culpa grave na hipótese de lesão ao patrimônio [público].

Isso não significa que outros atos ilegais e irregulares fiquem impunes. Continuarão a ser punidos com o obrigatório ressarcimento ao erário do prejuízo e com a aplicação de outras penalidades administrativas.

Terão de ser punidos pela legislação comum, como a lei 8.112 [que trata dos servidores da União], a legislação dos crimes de responsabilidade, se for o caso.

Muito se discute hoje a negligência de governos na gestão da pandemia, como a compra de medicamentos sem eficácia. Com a mudança em relação ao dolo, isso poderia ser punido? Tem que haver uma penalidade para esse tipo de conduta. A questão aí, nos casos concretos, por exemplo, da pandemia, será conseguir mostrar a intenção dolosa das autoridades que estão fazendo essa pregação negacionista ou por medicamentos sem base científica.

Eu não entendo que fique mais difícil [a punição]. Tudo é uma questão de se fazer um esforço necessário para provar o que você quer provar.

O que cabe é exigir do órgão acusador que faça o seu trabalho bem feito. O que não se pode é admitir, como muitas vezes a gente tem observado, a incapacidade do promotor ou a ausência de esforço necessário para distinguir quem é inocente de quem é culpado.

São penalidades muito graves para acusar uma pessoa sem ter a responsabilidade de comprovar realmente os elementos necessários.

Na época dos debates, o sr. foi contrário à exclusividade do Ministério Público em ajuizar ações de improbidade. O texto foi aprovado com essa mudança. Sou contrário. Não me convenço com a justificativa de que há risco grande do uso político das ações em pequenos municípios pelo Brasil.

De fato, não dá para comparar o preparo técnico da advocacia pública da União com os setores jurídicos das pequenas prefeituras. Mas está se partindo de uma premissa que eu não assino embaixo: de que as únicas pessoas íntegras são do Ministério Público.

A AGU [Advocacia-Geral da União] deveria continuar tendo, sim, legitimidade ativa na ação de improbidade. Esse alegado risco de que pela competição política nos milhares de municípios haveria uso político da ação de improbidade para prejudicar adversários não é verdade. O número de ações de improbidade por iniciativa das prefeituras é ínfimo. E, se acontecer, tem que partir da premissa de que um juiz vai julgar aquilo.

Na prática isso vai fazer muita diferença? Eu diria que não. Porque a maioria das ações de improbidade são ajuizadas pelo Ministério Público.

A lei em vigor é criticada por ter termos vagos. Mas, ao mesmo tempo, abre a possibilidade de punição a atos considerados imorais, como furar fila. Com a nova versão, isso não vai ser revisto? No direito penal, uma das exigências é que os tipos sejam bem específicos para que se evite o arbítrio. À medida que a norma é muito aberta, ela deixa ao juiz ou ao órgão acusador um campo de discricionariedade enorme.

Qualquer coisa pode ser "ofensa a princípios" [da administração pública] e descarregar uma penalidade violenta em cima de uma pessoa. É tão amplo que se enquadra qualquer coisa. Por isso o STJ já veio a dizer que era preciso qualificar como algo que em que se demonstre a intenção de praticar ilícito.

E a questão da indisponibilidade de bens dos acusados? Na forma atual, a indisponibilidade de bens pode ser decretada independentemente de qualquer sinal, qualquer indício, de dilapidação ou alienação do patrimônio [do réu]. O procurador pede, e o juiz dá.

Tenho visto casos pavorosos. Bloqueiam todo o patrimônio da pessoa durante o período que vai tramitar aquele processo, sem que a pessoa tivesse dado motivo para isso. Isso foi corrigido. [O texto aprovado fala em bloqueio provisório apenas se ficar provado no caso “perigo de dano irreparável”].

É uma lei que foi aprovada em 1992, durante o auge da derrubada de Fernando Collor, quando havia toda uma pressão social pelo endurecimento das normas.

O sr. acha, então, que a lei atual tem muitas inadequações? Com certeza. Se você me perguntar: O projeto é perfeito? Assinaria embaixo de todos os seus artigos? Não. Tem algumas coisas, a meu ver, mal colocadas, e outras coisas exageradas.

Por exemplo: um artigo diz que o juiz poderá autorizar o pagamento do débito resultante da condenação por improbidade em até 48 parcelas mensais. A meu ver, isso é um exagero. Passou do ponto, não seria razoável.

Há parágrafos que estão mal postos, que podem gerar problemas de interpretação porque as normas não ficaram claras. Também não concordo com o aumento do prazo da prescrição para dez anos.

Como vê a mudança na punição com perda da função pública? [o projeto aprovado dificulta, por exemplo, que um deputado perca o posto por causa de um processo da época em que foi prefeito]. ​Concordo que isso não é conveniente. Pode acontecer que a função da época seja de muito menor importância do que a função atual. [O processo] demora muito tempo e a função não tem mais nada a ver.

Entendo que o projeto tem muito mais virtudes do que defeitos. É uma mudança necessária.

Não é invenção de deputados eventualmente interessados. É um projeto elaborado por uma comissão de juristas, presidida por um ministro do Superior Tribunal de Justiça, Mauro Campbell, que já julgou milhares de ações de improbidade. O primeiro anteprojeto já restringia a improbidade a [ações por] dolo.

Como o sr. avalia o debate sobre o combate à corrupção hoje? Procuradores dizem que há um desmonte, com revisão de legislações. ​Vejo retrocessos, mas não por essas mudanças legislativas. Há 20 anos não havia combate nenhum à corrupção e se começou a fazer alterações nas leis. Vieram Lei da Transparência, Lei das Organizações Criminosas, Anticorrupção Empresarial e por aí.

O endurecimento normativo foi muito grande nesse período, com fortalecimento das instituições de combate também. O Ministério Público teve autonomia que nunca havia tido antes. Aconteceram excessos. Ajustes na legislação foram necessários, como os dessa Lei de Improbidade.

O que indica retrocesso são outras coisas. São decisões que impedem a atuação do órgão de inteligência financeira, como o Coaf. Criação de barreiras para a comunicação entre Coaf e a Receita ou a CGU. Esses órgãos têm que trabalhar em permanente articulação.

Outra coisa que prejudicou o combate à corrupção foram os desmandos da Lava Jato. E é muito ruim que tenha acontecido.

Jorge Hage Sobrinho, 83

É advogado formado pela Universidade Federal da Bahia e professor. Foi prefeito de Salvador pela Arena (de 1975 a 1977), deputado federal constituinte pelo PMDB da Bahia e juiz no DF. Foi chefe da Controladoria-Geral da União de 2006 a 2014 (governos Lula e Dilma)

O que pode mudar na Lei de Improbidade

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