Descrição de chapéu

O selvagem da motociata e sua máquina de corpo estilizado de curvas femininas e voluptuosas

Bolsonarismo é só o exemplo mais visível de resistência desesperada e violenta a tudo isso que está aí

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Maria Homem

Psicanalista, é autora de ‘Lupa da alma’ e ‘Coisa de menina?’ (com Contardo Calligaris)

O menino tinha 11 anos e ficava brincando de virar homem nos reflexos das janelas: sou macho, olha aqui, gatinha, sou muito macho, e aqui tem muita testosterona, vem, vem, ui, ui, vem pro papai, vem pro rei aqui, pro titã. E ria, ria. Imitava os primos, os vizinhos, o pai, os galãs de youtube e anime. Como vou ser homem quando crescer?

Ou agora, que já começo a ter pelo e, mais preocupante, que tem uma parte enigmática do meu corpo que funciona quase sozinha, a despeito de mim mesmo. Me intriga muito. Preciso ter controle sobre isso. Preciso ter um jeito de entender tudo isso sem me assustar ao extremo. Afinal, como é ser homem?

O instrumento sempre foi continuação do corpo humano. Qualquer instrumento: a pedra lascada, a pedra polida, a pedra preciosa. Instrumento material e simbólico ao mesmo tempo.

O presidente Jair Bolsonaro em motociata neste sábado em São Paulo
O presidente Jair Bolsonaro em motociata neste sábado em São Paulo - Eduardo Anizelli/Folhapress

A máquina segue esse mesmo modelo: é prolongamento e representação do meu ser: é mais perna, é mais braço, mais memória, mais inteligência. E a máquina não só me prolonga, ela também é mais do que eu. É poder. Ela tem inevitavelmente mais potência do que a do meu pobre, orgânico e mortal corpo. Ela vai mais rápido e faz mais barulho.

A moto é tudo isso e ainda mais. Ela é um corpo de fêmea. Corpo estilizado de curvas femininas e voluptuosas. Você pensa que isso é delírio de psicanalista freudiano que acha que tudo é sexo? (Tudo É sexo, tudo é Eros, no sentido de inevitavelmente ter a ver com laço, corpo e diferença; mas, ok, discussões epistemológicas profundas podemos deixar para depois).

Dessa vez quem está falando isso é o Museu do Design de Londres, que no fim do século 20 fez uma exposição chamada ”O poder do design erótico”. E tinha toda uma parte só para investigar o vasto universo das motocicletas.

Sempre curvilíneas, e ao mesmo tempo fortes, possantes, envenenadas. É feminina: imita e carrega a metonímia do corpo de uma mulher, fálica, sobre a qual eu mesmo me falicizo, sou um super-herói.

Cartum, cinema, HQ, porn: procure um pouco e você vai achar mulheres seminuas em cima de motos dos mais variados tipos e formatos, de preferência as grandonas.

Agora monta em cima e vai. Sai rasgando o pneu e se sentindo muito macho. Com o vento na cara. Que delícia. Aquela sensação de prazer, de força, de potência, se sentindo Alexandre, o Grande, em seu cavalo. E se for em grupo então? Aí é mais tesão. Somos imbatíveis. E vamos conquistar o mundo. Mete fundo, garoto. Vai, vai. Aqui tem muita testosterona. Sai cortando. Arrebenta.

Pelo menos nesse minuto você existe, você é incrível, você é macho. Nesse minuto, a vida lhe sorri. Pelo menos nessas quatro horas você desfilou por ruas e estradas e saiu com os brothers pra brodagem mais gostosa dos últimos tempos.

Aquela em que ainda por cima você vai berrar pra todo mundo ouvir: chupa negão. O líder grita, e a gente vibra. O grito primal, aquele que vem do fundo. Você perdeu, você tá aí cheio de papinho e mimimi, mas eu venci, melhor já ir se acostumando. E vai ter mais. Não acabou não e não vai acabar.

Tô aqui batendo no peito e montado na fera para te mostrar que vai ter mais, muito mais. Nesse minuto de ouro, nessas quatro horas, nesses quatro anos ou mais quatro ainda ou décadas, você vai ter que engolir.

Aceita que dói menos. A gente manda bala, rasga placa, cartaz, gente, tudo. Chupa, mano. Vai ter golpe sim. Com cabo, soldado, general. Com voto impresso, com voto ou sem voto. Treme. Perdeu, playboy. É nois na fita. É nois na máquina. Ajoelha e chora.

Enfim, aqui o imaginário do macho que sofre, exausto, a infindável dialética entre o lugar de decaído e o de reconstituído. Às vezes convicto de que conseguirá manter sua posição intacta, às vezes precisando dar umas porradas destemperadas nas vagabundas, nos comunistas e nos bandidos que insistem em atravessar seu caminho.

Mas a história não acaba aqui. Vamos continuar essa conversa sobre a intrincada transformação civilizatória que atravessamos.

Afinal, a crise da política formal, o desrespeito a qualquer lugar de autoridade, o sonho de restaurar um mundo claramente hierárquico, o desejo de ordem, progresso e limpeza, a crença na força e no falo, o privilégio, a luta por direitos de todos os sujeitos sociais antes excluídos do jogo, o ataque à verdade e à ciência, o crepúsculo dos deuses são várias das faces da complexa crise do paradigma patriarcal.

O bolsanarismo é só o exemplo mais visível de resistência desesperada e violenta a tudo isso que está aí. Que já está aí, queiramos ou não.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.